Dec 29, 2007

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Martin Munkacsi.




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Quer dizer, muito disso que a gente vive é feito de repetição. Diária, rotina, segunda-terça-quarta-quinta-sexta, lá ou cá, viajando ou em casa, de sofá e moletom grande, a tv ligada mas sem som, a tv moderna muda, imagens refletidas na sala. Somos todos repetitivos, exaustivos por isso, mas por mais que tal repetitividade remeta imediatamente à "chatice", sem elas somos incapazes de existir. Eu sou.

Todo o dia o "viagra social" (paroxetina das genéricas, azuizinhas, inclusive). Todo o dia o anticoncepcional caro e de dosagem baixa de hormônios pra não inchar, ter tpms estrondosas e me aurar de espinhas purulentas. E ai de mim se um belo dia me revoltar contra minha medicação. No mínimo terei uma crise depressiva por falta de neurotransmissores e odiarei ao mundo, à vida e à existência, e até à arte, sem nenhuma razão aparente. No máximo terei um filho, com tudo que é um filho, o imensurável de gerar uma vida que, se mesmo dependente à própria, é alheia. Certas vezes me pergunto se já não estou como um daqueles loucos institucionalizados tão recorrentes no cinema. Aqueles que entram na fila indiana afoitos pelo copinho de café plástico descartável contendo coloridas, pequenas e deliciosas pílulas.

Mas, claro, eu jamais domaria meus rompantes insanos e lúdicos ou minha loucura perene a base de repetição. Talvez até conseguisse, se tentasse e quisesse. Mas peço “oxalá!”, me livre e guarde. Se os dias jamais me surpreendessem e toda a minha vida fosse de disciplina e rotina feito a exigência de meus remédios eu já estaria morta. É um conceito interessante pra morte, não? Uma coisa eterna e cíclica, hoje-ontem-amanhã não existem, são o mesmo e não são.

Se a metade mais um, uma maioria pequena da vida é do que certamente se fará sempre e desprovida de qualquer rota possível de fuga - das funções vegetativas às manias - há a metade menos um é do que pode ser novo. Pode, é só uma possibilidade. Na verdade é uma escolha. Pode-se abrir os sentidos, os olhos, os ouvidos, sentir e aprender e observar atento a novidade. Pode-se até abocanhá-la de uma só vez. Mas em oposto, completo oposto, há a reclusão, a soberba, o medo e a maldade de espírito, as mesquinharias bem pequenas e vermelhas. E se elas estiverem no recinto, o novo nem bate à porta, nem chega em frente ao portão. O novo é necessário, alguns o sabem outros o ignoram. O novo quer ser bem recebido, quer atenção. O novo é indispensável pros aventureiros, ainda bem que existe gente que se alimenta de reciclagem e aventura.

O mais fascinante de tudo é que mesmo que a novidade seja geniosa quanto ao estado do espírito que irá recebê-la, ela também é simples e gosta de dar as caras exatamente no que é visto, feito ou vivido todo o santo dia. Uma flor de nova cor, as pétalas numa abertura um tanto tímida, a formosura plena ainda por vir...; é sempre novo. Um mesmo beijo não é compartilhado quando se tem amor, amor intenso e completo como só pode ser o amor quando é amor, os amantes trocam carícias pelos lábios que são sempre descobertas, as sensações de arrepio sempre novas. Uma poesia relembrada na memória agora mais cheia e cheia de coisas e vivências não é a mesma poesia, as palavras saltitam e alcançam diferentes lugares do corpo, da mente, da língua. Uma sobremesa pode ter até a mesma dosagem e os mesmos ingredientes da outra que se experimentou na semana passada, creme de leite, biscoito e chocolate, mas o carinho e trabalho de quem a preparou certamente trará sabores novos às papilas. E também o vinho, o suco, o almoço que seja de arroz e feijão. A vida se desabrocha, a novidade é como ondas de cor no ar, que só consegue ver quem quer. Um mesmo rio não é visto duas vezes.

Dec 14, 2007

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a uma pequena que destila traquinagem, pequena com brasa nos dedos e nos pés, que saltita pelo mundo, bonita e faceira e me faz sentir saudades.



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Ahn, pequena, tu mereces um consolo. Se eu pudesse, encontraria alguns na relva, colheria sentenças reconfortantes, as cataria nas ramagens mais altas ou no meio da vegetação mais densa. Mas sequer as tenho mentalmente, para que eu possa soletrá-las, que seja, inaudível. Eu só posso ser ombro e ouvido agora, não voz. Que poderia eu dizer-te? Que esse mundo que se apresenta duro e cruel pode ser também divertido? Tu já o deves saber. Mas posso te falar que há extremidades longínquas dos dois lados, duas faces eqüidistantes e proporcionais, que são - e ao mesmo tempo não - da mesma coisa. Mas o sofrimento pode não ter fim, não, sofrer não encontra limites ou barreiras. É um estado amplo e pleno onde se só chega por querer, se sabe o caminho. Quem é que escolheria sofrer?

E eles levarão tua alma dia após dia, te pegarão cansada e desprevenida e mesmo assim, com todo o despudor, te chutarão em cheio nos rins. Eles nunca têm alma, semblante ou uma característica sequer que se possa recordar. Mas hora ou outra, entre um chute, entre uma pedrada, entre uma peça pregada pela vida, armam-se os espetáculos. Vê os vira-latas na rua, como cheiram as partes podidas uns dos outros curiosamente e como logo brincam e correm e rolam. Os bêbados, porque eles sempre gesticulam pro nada? Estão dançando nas calçadas, atirados na esquina, ébrios, rindo, talvez de quem passa cabisbaixo e sóbrio. Os homens altos de birita flutuam, voam no céu, enquanto todos acham que eles estão cambaleando no chão.

Talvez tu possas vir a saber demais – o que, embora gratificante, é também doloroso – talvez de menos, o que de certa forma é uma bênção. O fato é que cada novidade - tempestiva ou fortuita - te será de lição. Há lubrificantes pras mais pesarosas, toma um cigarro, bebe um gole. Gostaria de te dizer que isso sempre funcionará. Seria tudo mais fácil, inclusive. Mas as engrenagens sempre tendem a endurecer. A enferrujar. E outra ou outra os paliativos que untam e lubrificam a massa toda ficarão pastosos, um ranço na boca que Baco não quer abençoar. Bebe assim mesmo, engole. Acredito firmemente que é necessário se estar bons tempos bêbado, não importa se de cachaça ou amor. É quando a vida é tão trêmula que te embaça a visão, quando o mundo gira tão alto que tu te sentes tonto. E o alcalóide e o prazer. Medi-lo? Não há como. Nem evitar. E não queira abdicar dos seus prazerezinhos de fim de tarde, os rotineiros, aquelas vicissitudes que a gente cultiva a vida toda em nome de um ideal maior. Ao menos pensa-o e remoe-o bem antes de fazê-lo. Os nobres ideais andam sumidos, quase inexistentes. Dos que restaram, uma parte é caquética como veteranos de guerra idosos e enlouquecidos, querendo resolver as coisas de seu modo bruto – vivendo num mundo a parte, degenerados pelo tempo e carentes e razão – uma ideologia que nem convence, mas a outra, embora travestida de novos ares e que até pode vir a impressionar é só aquilo que já se foi e que deveria estar abaixo da terra juntamente do passado à qual pertence. Melhor mesmo é tratar de formular um próprio ideal, um “auto”, que te pertença e condiga exatamente aos seus anseios, nem mais e nem menos. Algo teu. A tua vida te pertence, dessa forma, suas crenças também devem partir de ti.

Só posso te dizer pra conservar o que é bom. A beleza apodrece, a beleza desmancha, a beleza se desfaz em pelancas e tristeza. Os frutos tenros são passageiros, a maturidade os torna moles. Todavia há memória grande pro que há de imutável. Há quimera, música, dança, cena, poema, flor. Há satisfação em algumas coisas. Mesmo que falem sem parar aos ouvidos, mesmo que te aborreçam e te entristeçam, que fofoquem camelices, não leiam jornais nem livros, não sintam o cheiro da terra molhada, da tarde de ensolarada e nem o queiram, mesmo que não parem pra olhar o céu, descobri-lo, ou mesmo, nos exageros, que todo e qualquer humano te pareça monstruoso dia ou outro, ainda há gente que fascina, encanta e nos faz querer estar perto [ou até mais perto se perto, se me entendes]. Conversas bacanas, algumas bem leves, outras que conseguem transformar brisa branda em chumbo. Gente que faz bem, que faz mal, mas mais bem que mal. Não é balança. Jogar fora o que passou e ficar com os lucros, se houver algum. Há gente que prefere sonhar ao invés de afundar na maré. Gente que sabe consolar quando é necessário.

...Eu não sei. Serve-te meu colo, meu ombro, minha pele bem pressionada contra a tua? Posso te dar uma tarde também, passearemos e falaremos coisas que ninguém entende. Um vocabulário nosso, os risos também são verbetes e uns diferem dos outros, cada qual com seu significado.

Há dor e poucas vezes contorno. Há curvas, turbulências. Há tardes que chove e que não se encontra nada pra fazer. Há tédio, náusea, lástima, dureza. Mas força, pequena, há arco-íris no céu depois da chuva, há vaga-lumes aparecendo e desaparecendo, indo prum mundo que não se pode pensar, só idealizar de relance. Pra onde vai a luz enquanto os pontos piscam?

Há coisas que não mudam nunca e outras que sempre mudam. Por exemplo: se o formato de meu ventre, se meu colo e meus braços perderem a forma, ficarem pálidos e tristes, sem vigor, mesmo assim, mesmo completamente diferentes dos que já foram, eles sempre serão abertos e esperarão que você se delineie e se enfie embaixo deles. É como um canto de mundo que você já possui, já conquistou. E que lhe será sempre disponível. Todo o inominável sempre.

Nov 27, 2007

Sobre a pobre pequena no Pará [e ainda sobre as mulheres]

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Cena corriqueira e cotidiana: uma feminista é tida como chata e recalcada. Ao mesmo tempo, garanto, em diversos lugares. Ainda há o estigma, a rotulação que titula feminista de mulher teimosa, chata e possivelmente descontente com sua aparência física e/ou assexuada. São os lugares comuns incorporados e reincorporados na sociedade como uma praga. O feminismo real só clama dignidade e justiça. Só vê fatos. Mulheres são mulheres. Homens são homens. Negros são negros. Gays são gays. É a diferença. Pedir e bradar por mais dignidade para gêneros sabida e historicamente desfavorecidos, medidas que os assentem e que exaltem exatamente as iniqüidades não é nenhum ato estapafúrdio. Antes um gesto bonito, nobre e importante.
Tá aí o Pará, latejando no meu estômago e ardendo no meu coração. Provavelmente no de todos. Uma CRIANÇA de 15 ANOS. Uma pequena atirada ao seu azar em uma jaula com vinte fascínoras viris varões capazes de atrocidades que despertam repulsa. Durante vinte dias a menininha foi incessavelmente abusada. Um estupro só, praticamente único, que durou absurdos vinte dias. Junto à fome, aos maus-tratos, à desgraça. Era uma criança sendo devorada aos poucos e ninguém viu. Dizem, seus conterrâneos que ela gritava, nas entrevistas que vi na TV. Um castigo hediondo e cruel, que não só aflige os direitos das crianças e das mulheres, como os humanos. E qual foi o crime mesmo? Aliás, importa?

Descobriram já que não foi só ela a mulher desprezada pela lei – que deveria, ironicamente, garantir os direitos das próprias – no Pará. Brotam pelos cantos casos como esses por lá. Eu me estarreço mais ao constatar que a senhora governadora é uma espécie do gênero feminino, o que ao menos deveria garantir um pingo da sensibilidade característica. Quer dizer que naquelas bandas a mulher que estiver devendo às leis e à ordem pagará com castigos que a ferirão não só fisicamente [hediondamente, como mostrado com a menor], mas moralmente, e perderá por completo dignidade, por todas as cidades? Que tipo de retrocesso desumano é esse que assola o norte do país?

Se as feministas são chatas, elas vêem que há raízes profundas de desvalorização, desfiguração e desrespeito às mulheres. A cada quantos segundos uma nova é espancada no extenso Brasil mesmo? Com que freqüência por minuto ocorre um estupro? Quantas vezes uma garota se submete a sentenças machistas ou se sente violada e desrespeitada diariamente? Quantas vezes se sente insegura e frágil diante de uma sociedade que teima em se manter voltada a um paternalismo caucasiano? Além do quase destino cármico que se estabelece na vida de uma mulher negra no país, segundo as estatísticas, que só escapará da sina de empregada doméstica com muita garra e determinação. Ganhar menos do que os homens é outra realidade que também assola, mas que até parece menos preocupante quando consideradas todas as outras rodas do moinho dessa estrutura social corrompida desde sempre.
Não vi, mas dizem os jornais que a compleição física da pobre menina do Pará era de ainda mais jovem do que sua idade real, míseros quinze aninhos. Na matéria, o pai dela conta que foi ameaçado pelos policiais do município para que falsificasse a certidão de nascimento, transformando a jovem em maior. Caso contrário seria preso. Não vi, mas imagino doloridamente a menina sendo deflorada por todos os instantes, imagino o medo, a dor, a raiva, a angústia, o abandono que ela sentiu. Não vejo, mas tento vislumbrar um jeito, uma saída, pra todas essas falhas aterrorizantes, essas maldades geladas, essa menina que deve estar trêmula de trauma. Pra ela, o mal já está feito, as chagas já foram abertas, reabertas, penetradas, maltratadas, queimadas a cigarro, violentadas. Quantas novas chagas por aí foram abertas e reabertas enquanto eu escrevi estas linhas?

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Oct 29, 2007

O Artista da Fome

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Não é mito. Se Kafka delineava o artista que se compraz de sua fome e a exibe em praça pública, definhando por trocados, há os que, a despeito da miséria do estômago e dos miúdos ressequidos fazendo ruídos em todas as escalas e tons, ainda assim, zonzos de fome, se dedicam ao processo mais sublime, perfeito e puro possível de execução por um humano: o de criar, artisticamente. Que embora só arte transcenda o espírito, só arte recrie vida tão perfeitamente a ponto de dar sentido a ela própria, embora só, exclusiva e somente, a arte, juntando poesia, despeito, drama, sons, cores, acordes, formas, curvas, histórias, alegrias inesperadas e espontâneas, e principalmente, a humanidade mais frágil e escorregadia a pele, essa essência que faz sentir o interior ainda é de pouco valor nesse mundo capitalistamente previsível, consumível e prestes a deterioração em que habitamos.

Sair à rua, na praça. Lá está o músico com seu chapéu onde reluzem duas ou três moedinhas. Talvez simbólicas. As músicas, melodiosas e ressonantes, cuja beleza possivelmente seja potencializada por causa da melancolia que as toma E ao lado vestidos em preto, couro e taxas pontiagudas, jovens vendem poesias escritas na ânsia incontível, hormonal e rebelde da adolescência. Sim, eles tentam vender o que não se comercializa, o que, por todos os céus não é comprável, que só se pode aspirar pelos poros e sentidos. Absorver. E no meio de todo fluxo da cidade, toda a massa anônima em passos rápidos e agitados, existe uma esquina prosaica, um casarão antigo, naquele cantinho de rua está o velhinho branco pintando imagens do colorido e quente litoral que o berça. Só retrata dias alegres, quentes do sol que curtiu a cútis do homenzinho franzino. Mas ninguém compra, ninguém sequer olha pro músico que tenta tocar sua seresta no tráfego, ninguém percebe os poetinhas marotos que querem comprar seu vinho, o velhinho está esquecido na esquina que sequer a memória do litoral lembra.

Artistas que não optam pela miséria, mas que, atirados em seu lodo, se deixam naufragar a tal ponto que só nela conseguem o distanciamento de todos os rótulos, caprichos fúteis, contradições vis que regem a forma como a conduta humana se estabelece. De ventre seco, à noitinha, sem almoço as maiores almas poetas conceberam letras para as quais nem o próprio pensamento está pronto.

Vide tudo isto, a explanação toda que eu discorro sobre os que, se famintos de alimento e dignidade, fartos em lirismo, em dons e em espirituosidade, e é só, e apenas, para introduzir um poema do peruano que personificou a idéia de artista da fome. Quem mesmo de bolsos furados e vazios, transcendeu à matéria e ao ter, concluindo uma produção inovadora, marcante, profunda e, sobretudo, de humanidade e talento comovente.


“ - Senhoras e senhores, el club silencio satisfaz-se em apresentar César Vallejo em uma de suas melhores performances, com o poema ‘Considerando en frío, imparcialmente...’













Considerando en frío, imparcialmente...




Considerando en frío, imparcialmente,

que el hombre es triste, tose y, sin embargo,

se complace en su pecho colorado;

que lo único que hace es componersede días;

que es lóbrego mamífero y se peina...


Considerando

que el hombre procede suavemente del trabajoy

repercute jefe, suena subordinado;

que el diagrama del tiempo

es constante diorama en sus medallasy,

a medio abrir, sus ojos estudiaron,desde lejanos tiempos,

su fórmula famélica de masa...



Comprendiendo sin esfuerzo

que el hombre se queda, a veces, pensando,

como queriendo llorar,

y, sujeto a tenderse como objeto,

se hace buen carpintero, suda, matay

luego canta, almuerza, se abotona...



Considerando también

que el hombre es en verdad un animaly,

no obstante, al voltear, me da con su tristeza en la cabeza...



Examinando, en fin,

sus encontradas piezas, su retrete,

su desesperación, al terminar su día atroz, borrándolo...



Comprendiendo

que él sabe que le quiero,

que le odio con afecto y me es, en suma, indiferente...



Considerando sus documentos generale

sy mirando con lentes aquel certificado

que prueba que nació muy pequeñito...



le hago una seña,

viene,

y le doy un abrazo, emocionado.

¡Qué mas da! Emocionado... Emocionado...






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Oct 15, 2007

Confissão

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Rita pegou o papel na parada de ônibus. Remexeu, remexeu a enorme mochila até encontrar um bloco grosso de folhas brancas, limpas. A primeira letra que leva à segunda e à terceira. Verbo puxa verbo. Assim sempre fora a forma como escrevia: vinha o impulso incontrolável, descabido até, em determinadas situações. E aí, ficava só papel, caneta e enxurrada. A caligrafia absurdamente ilegível. Uns rabiscos rasurados, censurados, trêmulos. Não havia tempo para se esmerar na forma, tinha todo o conteúdo de seu peito a expressar. Na cadência que se estruturou, viu que confessava particularmente como era, tendo-lhe como única expectadora, única ouvinte. Na parada de ônibus, não viesse mais ônibus, nem escutava os barulhos e os gritinhos das crianças indo para a escola, nem as conversas de vizinhas íntimas e inocentemente maldosas. Queria que sua prece, sua oração exclusiva que o impulso não deixava acabar, se concebesse líquida, fluída. E branca e alva. Eram pequenos versos, alguns joguinhos verbais, que de estalido se findaram. Talvez pegajosos, talvez fluídos, talvez alvos, talvez carnais. Eram seus.























[...]





Sou bicho. E capricho.
Uma eterna caçada de profusão
Até onde
Há quietude.
Sou mata, mato,
Morrer.
Orações pegajosas entregues nos
Panfletos, papel amarelo na ladeira
De onde descem
Os meninos
Escuros.

[...] Escuro.

Sou manhã fria, manha, preguiça,
Tarde primaveril, chuva leve ao
Anoitecer, a cantiga de ninar em
Assobios que fazem calar.

Ahn, e sou capacho,
Um escracho em que
Se pode pisar,
Sem vestígio
De receio.
Um pedaço de pelúcia
Rasgado, estirado,
No chão sujo.
Quem lambe as solas
Das chinelas, ou ainda,
Aquela que se indigna com os pavores do mundo.,
Levanta, e se põe a sapatear
Por sobre cada um dos calos
Alheios.

...freneticamente...

E nessas crises de ego, de alma.
De existência que chegam pela porta da frente,
Eu não posso, não creio
Ser nada.
Um pequeno agregado de vácuo
Na poltrona, a não matéria cabisbaixa,
À beira de onde se findou todo o sentido.
Toda a essência.
Mas, ainda...
...sou tanto!
Quanta coisa distorcida,
E refeita.
Desmontada,
E reconstruídas.
Todas essas visões revisitadas,
Os sentidos...!

Essas mãos habilidosas que
Tecem, as teias, os dramas.
Essas almas contando estórias,
Essas fábulas sem moral.
Versos ritmados
Do que é pitoresco.
Burlesco, exagero.
Cadência, ahn, gira, gira
A ciranda.
Vejo o mundo, então, afinal,
Só posso ser mundo,
Soletro-o!

[...]
Duas mãos em concha
Que abrigam água fresca, límpida.,
A água, o elemento vital, o bálsamo,
Que gota,
A gota,
Esvai-se pelos
Longos
[e finos!]
dedos.

Oct 11, 2007

reatada com o blógue.

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Os jornais amarelam e o pó se posta aos montes na prateleira. É ele, gigante, retumbante, o tempo liberando seu ocre e deixando sua lembrança aos alérgicos. Também este pequeno club, estas arestas que abrigam umas ou outras idéias, as cadeiras, o palco, tudo parece anunciar com pó e assobios a passagem da grandeza que não se mede, todo o inominável que deixa pra trás o calendário. Que hajam teias pelos cantinhos ou no forro de meu pequeno club retirado de todo o mais, que não haja ruído algum, só copos quebrados. Há horas de limpeza e desconstrução. Assim, ordem irreversível, o demolir pra reconstruir. Pôr abaixo paredes, pôr abaixo imagens, certezas e abstrações tolas. E ficar com o essencial. Hora de retomar.
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DIAS GOSTOSOS



















Ela estendeu a mão e acendeu o primeiro cigarro da manhã. À rede. Um balanço preguiçoso, até o vento despertava leve, espreguiçando-se pelos lados, sem direção. Uña chica passava na trilha de areia e mato enquanto observava os pássaros derramando seus sons pelo céu, parou alguns segundos, cumprimentou-a mansa, com aqueles dengos de quem acabou de acordar, e com simpatia incomum aos desconhecidos. Todos os desconhecidos eram assim no bairro, simpáticos, agradáveis. Mas ainda era cedo e não haviam trânsito nas trilhas de areia fofa. Não havia nem barulho. Só o azulão além das dunas, aquele bocado de mar que suga, hipnotiza, diverte, encanta, é que estava bravio na matina. A fúria das ondas que estouravam e da maré que acabava de baixar se postavam aos ouvidos, embora, um pouco distantes. Aquele ruído de fundo acalentando o sono também era conforto ao despertar. As sensações de um paraíso quieto, primitivo, lindo eram as de todo o dia. De fato, um paraíso.

Todas as horas transcendiam assim, leves, para a menina que se adaptava à vida no lugar ermo. Não ermo daquele jeito enfadonho, horas e horas desperdiçadas, como se fossem todos dias comuns. As coisas aconteciam, ressoavam, vinham de encontro a ela naquele ponto de paz que lhe abrigava. Todo o instante acontecia, festivo, tenso, produtivo. Mas, em geral, o clima sempre acabava tendendo ao bucolismo, ao despretencioso, ao aconchegante. A rede para os cigarros, os livros que, enfim, tinha tempo para ler, a areia fofa pra enfiar os pés, as poucas roupas de caimento solto, soltíssimo, meros pedaçotes de pano a tapar cá e lá, um Caetano jovem e inebriado de litoral no vinil e, por fim, o mar ali adiante – água gelada feito bálsamo pra alma e um descanso infinito pra vista.

“Dias gostosos”. A única frase com que a menina de cabelos grandes e pele avermelhada se acostumando ao sol podia definir seu novo tempo. Era tudo novidade, ela não estava acostumada com tanta candura, tanta beleza, tanto sol. Vinha de um lugar frio e gostava das noites geladas de seu antigo lar. Mas as sensações são diferentes no litoral. Mais aprazíveis, inclusive. Preocupações esdrúxulas da vida urbanóide somem. Sobram as angústias reais com o que é verdadeiramente importante. O essencial.

Era gosto. Gosto de fazer as coisas. Tudo meio gingado e embalado, a própria rotina não entediava. De oposto: saber que hoje faria as mesmas coisas de ontem alegrava ela. Porque mesmo repetidas, as coisas eram prazerosas, de forma ou outra. Uma caminhada na beira da praia não seria igual à de ontem. Um entardecer não era igual a outro. Mas mesmo assim, em todos os torpores da partida do astro-rei, a cada dia mirando-o partir ela declamava mentalmente os versos de Cruz & Sousa, simbolista local:“Indefiníveis músicas supremas/ Harmonias da cor e do perfume/ Horas do acaso, trêmulas, extremas/ Réquiem do Sol que a dor da luz resume.”

Jul 18, 2007

uma noite de puro caos.

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fumo treslouca e desesperadamente. não que seja uma qualquer nova ou realidade diferente, só que a compulsão agora toma ares de despedida. com os conformes excessos da despedida. é como se fossem arrancar-me um apêndice vital. a continuação de meus dedos e de meus gestos. e não mais girará sobre mim a fumaça leve cujo cheiro, acreditem, aprecio.

estarei só na insônia, mas meu hálito melhorará - eu lá quero hálito fresh! quero o filtro vermelho em riste, é a minha própria armada frente as obscenidades desse mundo.

mas tiram de mim, eles tiram. eles quem? ora, quem...!, o governo, certamente! não são eles que nos tiram os pequenos luxos a que ainda nos damos? não são eles que fazem a classe média avistar em seu próximo passo o abismo? sim, são eles. pouco me importa que eu esteja estupidamente necrosando um órgão vital na minha rotina, não consigo fazer das preocupações com a saúde futura um peso em minha consciência. acho que até deveria, mas não consigo. é o bolso o outro apêndice [e mais vital ainda] o que clama uma chance de sobrevivência.

outro cigarro. a despedida, a despedida...



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nota:

o-filme-que-não-deve-ser-assistido-quando-se-leva-a-cabo-a-difícil-e-triste-decisão-de-abandonar-o-cigarrê: nicotina.


[exacto! eu também percebo que a nomenclatura que denonima o filme remete diretamente aos bastões brancos. todavia, la película producida en Ciudad de Mexico é um filme agradabilísimo de se assistir. com trama irreverente e atada com maestria e atores e notáveis. em suma, tudo bem feito. e um perfeito programa se tiveres acompanhado de umas boas duas carteiras.]

Nicotina. drama. Paris Filmes. direção: Hugo Rodriguez. elenco: Diego Luna, Marta Belaustegui, Lucas Crespi. ano: 2005.
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o dia em que o stabilishment é sensibilizado por um despretencioso casal do subúrbio florianopolitano.

dados sobre a empresa "pizza hut":

países de alcance: oitenta e oito.
número de restaurantes: mais de doze mil.
produção diária de pizzas: mais de 11,5 milhões.
outro dado que dá a noção das projeções da empresa: a Pizza Hut é a primeira corporação no mundo a colocar o seu logotipo na fuselagem do maior foguete de prótons já construído, lançado ao espaço no dia 12 de Julho. com esta decisão, a Pizza Hut abriu um novo capítulo na comercialização de projetos espaciais.


verificados então tais dados, fico eu abismada por haver sido notada pela gigantesca corporação.

em uma dessas noites chuvosas e frias da ilha, toda acabada de gripe e com aquela fome típica de jovem sem anseio algum pra cozinhar, pedi uma pizza. das huts de promoção, com desconto. após ter de esperar mais de duas horas para o recebimento dela - da pizza-, e haver ligado mais de quatro vezes para reclamar o atraso, eis que a recebo: gelada e murcha, a rúcula clamava por hidratação e o tomate seco era uma das coisas mais antipáticas que eu já vi. minha indgnação só poderia ser aliviada com um bilhete esclarecedor de minhas iras ao responsável. afinal, mesmo que das pequenas, eu ainda sou uma consumidora, não é mesmo?

e o responsável recebeu mesmo o bilhete que jurávamos todos - ou seja eu, meu marido e talvez a pequena vira-latas Dinalva - ninguém exceto o motoboy de luvas veria. leu e ficou bravo. no sábado o telefone daqui de casa foi inundado de pedidos de desculpas. e sem o dipêndio de nenhum reles tostão não é que fui abonada de uma pizza grande, gostosa e entregue em vinte minutos?

...huh!

[ou: hut...!]
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e finalmente, meu sincero – ainda que inexpressivo, sincero e pesaroso – luto pelos gaúchos, paulistas e quem quer mais que houver sido lesado pelo acidente aéreo em Guarulhos. [que já está sendo considerado o maior desastre do tipo da América Latina.]

se instantes de silêncio e bandeiras arriadas não passam de meros símbolos tradicionais para a dor, poemas podem ser o estandarte a canalizar as lástimas:
que mais haurir pode da morte lida,
da sentida vaidade de seguir,
um caminho, da inércia de sentir,
do extinto fogo e da visão perdida.
senão a calma aquiescência em ter
no sangue entregue, e pelo corpo todo,
a consciência de nada q'rer nem ser.
[Fernando Pessoa - A Parte do Indolente]

Jul 5, 2007

de onde vêm os verbetes.

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sempre esperamos que flua com harmonia o ilustre parto que é o do vocabulário.
uma primeira frase bem feita garante muita coisa, mas bem, partos são partos,
sempre possuem seus riscos - de erros de ortografia a acidentes de óbito.






há os que buscam uma pausa dramática pra anteceder o ato: afiar o cálamo, jogar paciência ou preparar o café. é a necessidade de singelo momento de reflexão - uma ordem silábica está a se estruturar nos miolos, ora pois!


e quanta beleza se abriga nessa faixa gigantesca de escritores que se alastra portão afora. mas não qualquer escritor que eu digo. falo daqueles que escrevem por gosto, necessidade, paixão. é o ritmado destrinchar de palavras o único alívio àquele aperto sentido num buraco lá do fundo do estômago. aquele cuja dor aumenta consideravelmente após a ingestão da dose quente de café, mesmo não existindo dor alguma que compense desistir de uma xícara bem grande e fumegante [ falando como portadora de diversas úlceras. huh.]




escrever com cálamo e tinteiro é uma arte que transcende às significâncias e significados para se tornar visual. já os teclados e monitores facilitam a conexão entre dedos, olhos, atinos e idéias: os termos se materializam frente à visão tão logo tenham vindo à consciência - imagine se Freud e James Joyce dispusessem de um micro com internê.



deixei minha própria pausa pro final. acendo um filtro vermelho - garantia de tumores ainda mais negros, mas um de meus maiores prazeres - e coei o café extra forte, tudo com água na temperatura ideal e capricho. quer dizer, mesmo essas minhas linhas preenchidas da despretensão de quem não crê em talento, ela são, sim, frutos de um parto. não dos doídos, dos mais leves. que pensar em final decente e me dar direito a pausas performáticas não é nenhum luxo. nada que se relaciona com prosa, verso e verbo o é. é antes regurgito. e antes trago, salvação e perdição. exorcismo. patologia...




... ou cura.

Jul 2, 2007

das horas rimeiras, romeiras horas, primeiras horas...

...às auroras sem despeito.


o corredor está mudo, passada alguma pra ressoar. só algum ou outro bicho que ronda o longe. bicho tímido, bicho só à procura de - quem sabe? - talvez uma simpática companhia. e há aquele relógio cromado na parede da sala esbravejando, sem fúria e copiosamente, que da correnteza não se sai ileso.

é tique-tique e taque-taque. os ponteiros ficam em segredilhas a cochichar o prenúncio do que nem é novo. lá são tantas as voltas pra dar nessa cirando estática e carente de riso que se eu decidir fugir de algum ou outro giro ninguém notará. sumo e me evado do tempo na esperança de que, vá lá, talvez ele se esqueça desta pobre alma insone. sair em sigilo às barreiras do cronometrado e do agendado, das voltas no mesmo quarteirão e das viradas previsíveis do destino místico pra passear onde não haja vestígio de constância numérica. começar o dia que não se marca no calendário só é plausível quando é diluída no ar generosa dose de inconstância quimérica. senão, sinto informar, mas pouca coisa se aproveita.

e se o dia é todo nesse faz-de-conta de inocência simulada, quero maços de cigarro que não me rendam futuras necroses ou metástases. junto com café que não resulte em gastrite e, se não for exagero, uns docinhos que não tripliquem as adiposidades abdominais. é um infantil desejo que carrego de poder sentir de meus pequenos prazeres sem temê-los. e sem essa mentira que eu tento engolir há tempos chamada comedimento. quanto mais anos acumulo, mais creio ser o bom-senso o pai do agridoce que dá ânsias de regurgito. vou de amargo e garapa ardendo na língua. bons modos fazem Lair Ribeiro e suas apostilas/mapas para o sucesso. atracações impiedosas fazem Salvador Dalí.

música! não aceito manhã que desperte quieta. imagino-a feito estrondo, compatível até com um sintetizador. ou, quem sabe, jimi hendrix no vinil. e chaleira a borbulhar e apitar. entra Beatles: good morning, good morning, good morning, good. as janelas do andar de cima sendo abertas, uma a uma. tudo junto nessa vertente de ondas sonoras e coloridas. difrações, reflexos, ecos retumbantes. é o dia que vem pra logo ir sem que se aperceba. é a maré que eleva e rebaixa sem destino à alto mar que afogue. é barco que navega entre sereno e festivo.


venha a data em que não se contam as horas, se enumeram - sem nexo ou lógica inteligível em mundo real e concebível - as sensações que não se perdem. as que não podem ser esquecidas.

Jun 30, 2007

- duas considerações, por favor.

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texto que se enquadra na categoria de reaparições e palpites.

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a boa nova da semana.

foi aprovada uma medida governamental que torna legais as importações de cacarecos tecnológicos, de brinquedinhos de aparência duvidosa e, claro, daquele imponente montante de muambas provenientes de nosso colega américo-sulista Paraguay.

mais interessante ainda é que sequer os próprios sacoleiros gostaram da providência: a alíquota que custa a soltura do contrabando exige o dispêndio de suados e numerosos tostões. e sobre a repartição dos grandes empresários da importação desse nosso país - inacreditável país - nem se fala: todos consumidos pela ira bradando contra essa irreverente classe que é a dos sacoleiros. [que por sinal já se organiza sindicato com altos níveis de posicionamento, coisa que eu desconhecia.]

pra justificar e salvar do irrisório a nova forma de importação nacional, os representantes do povo brasilienses afirmam que a necessidade de tal medida provém de acordos amigáveis que devem ser tratados com nosso comparsa sulista que obtêm da marginalidade grande soma de seus lucros: a diminuição dos sacoleiros brasileiros estavam gerando déficit econômico por lá.

claro que todo o jeitinho brasileiro implícito nesta nova implica em dar uma alividím nas fronteiras. e uma conseqüente tiradím de policiais que zelam pela segurança nas áreas fronteiriças entre os cá e lá.

piada genial do orkute que me vêm à mente por hora:

- yo soy paraguayo y vengo del Paraguay para matar-te.
- para o quê?
- Paraguay!



***



quando os diamantes são pisoteados.



[ou, seção pagação de pau.]
“o lugar ideal para perder alguém ou parar perder-se de si próprio.”








que Walter Salles é mestre tupiniquim não há dúvidas, aliás nunca houveram. mas, se por hora o diretor desfruta da fama, das premiações e da conta bancária merecidas, no ano de 1995 só dispunha de seu talento e de amigos também talentosos. e embasado neste último é que dirigiu, juntamente de Daniela Thomas e do produtor Flávio R. Tambellini, o filme Em Terra Estrangeira.

o orçamento, para um filme que dispunha boa parte de suas imagens obtidas em Lisboa, era baixo. trezentos mil dólares. mas, se há maestria em jogo, pouco patrocínio nem chega a ser grande problema.

a idéia do longa parte em três frentes: o uso artístico e criativo dos instrumentos cinematográficos, com toda a ousadia do uso abusado de noir, com transfigurações de imagem e uso de arquivo e, finalmente, com a magia de um filme feito em p&b; a transfiguração de todo o horror da era Collor- com o Confisco daquela pouca soma que a classe média/baixa havia conseguido juntar - para a película e, por último, com a vívida retratação do que foi a época de exílio e como era a vida como estrangeiro quando a vida no Brasil já transpunha o impossível.

pessoalmente, para os diretores, produtores e equipe, a realização do filme consistia também em rememorar a época de extrema dificuldade para o cinema brasileiro que eram aqueles anos. trata-se de um passado que, como afirma Daniella Thomas em entrevista creditada ao dvd, "se falava em cinema, se estudava cinema, mas não se fazia cinema pois não havia cinema no brasil." um refugo quase docemente vingativo e provocante é o rememorar de uma época onde a perda sobrepunha-se em todos os cantos.

o pisoteio das jóias é a última cena. o final – que não se conta, é verdade. mas um desfecho de obra feito com tanta força poética não pode ser calado. é poesia cinematográfica de peso equivalente ao de uma bigorna. tamanho impacto também é genialmente encenado pelo elenco, que inclui Fernanda Torres, Fernando Alves Pinto, Alexandre Boreges, Luis Melo e Laura Cardoso.

Jun 16, 2007

[guerri]ilha. [plan]ilha. [palm]ilha.

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ilhada.



todo o lugar é água, se não for breve pedaço de rocha que me sirva de alicerce. e de distâncias e de saudades faço meu traço, meu braço... ...meu Baco.



meus trejeitos trôpegos e minha criada para entoar cantigas arrastadas trocaram de endereço e deixaram pra trás um rastro de mar bravio que Moisés algum cruzaria.



se é de mudar, muda direito, menina!

e é em destruir a ponte após atravessa-la que falava aquele opúsculo de conhecimentos chineses.

coisas com mortos, entidades e obscuridades gerais.





foge ao vento - o estorvo do relevo.
guarda as saudades numa caixinha que Pandora alguma abriria.

inebria de vontade teus lábios.



...e inebria de ópio pobre tua alma, tua lama.


[Foto: henry cartier-bresson]

May 13, 2007

bentim.



"O homem conquistará sua liberdade
quando o último rei for enforcado
nas tripas do último padre."

[Diderot]


... ou do último papa, que seja.






IDÉIA NEM UM POUCO GENIAL
PARA UM ROMANCE QUE SE
CONTENTA EM TRAGAR
APENAS
O PÓ
DAS PRATELEIRAS.



não sei, sei não. talvez seja paranóia minha. ou maldade. ou, o que é provável, puro asco à esse catolicismo dogmático e dado às exuberâncias. mas o que eu acho é que esse novo papa com jeito de "cruz-credo!" - que não se enquadra na categoria de novidade de jeito nenhum - daria um romance, não dos bons, mas daqueles cheios de conspirações e labirintos. tipo o código da vinci, que é um livro terrível, exceto pela montagem dos pequenos capítulos. porque a estrutura thriller-que-você-não-consegue-parar-de-ler que moço muy rico Dan Brown fez, é notável.

amadureçamos a idéia:

a tv. as piores alienações e os insights mais desprezíveis começam por ela. e no domingo de manhã, então, a coisa encrespa. e foi nela que eu vi o papa, nesta minha própria matina dominical. é verdade que eu tenho calafrios ante a imagem do velhinho desde que ele foi eleito papa [é isso? eleito?], só que hoje eu tive a real dimensão de como ele é escabroso: hannibal lecter com sua focinheira passa vergonha. e não fossem só as olheiras, o olhar cheio de crueldade e a presumível satisfação orgástica diante de tanto luxo, ele ainda lê em latim. com aquela voz caquética, trêmula e de um rancor que eu não consigo entender. juro, deu medo.

o romance poderia começar com uma sala escura, na surdina da madrugada. trata-se um romance ruim-thriller-e-cliché, meu leitor entediado, eu já avisei de antemão, portanto se esperas um kundera desfiando seus propósitos narrativos, fecha a janela agora, no xizinho. se quiseres dou uma pausa para que te decidas entre continuar na empreitada ou não. ainda não fechaste? então acabou a pausa e eu continuo: no ambiente, silêncio e frio. e a saleta ainda é úmida, pra dar aquele efeito dramático. ao fundo, gemidos e ais que às vezes crescem até tornarem-se gritos de pavor. gritos de torturados. silício e e flagelos se tornam café pequeno perto das técnicas de dor dos algozes a serviço do sumo pontífice. porque o pontífice tem um exército de algozes ao seu dispor, com só um estalar de seus dedos caquéticos. a rede, muda e sigilosa, está infiltrada em todos os cantos dos monumentos catedrásticos. e embaixo das taças de ouro que contém os vinhos sagrados de tão caros. e nas beiradas dos confessionários, ouvindo as mais sórdidas confissões de pecadores arrependidos. e tocando o sino. e enquanto a extrema unção é dada à qualquer moribundo, alguém ouve. sempre há ouvidos atentos. [nota: quem estaria sendo torturado? e por quê diabos, se qualquer par de castiçais valiosos resolve tudo sem ruído? a se pensar, a se pensar.]

voz gélida e estranhamente confiante, então, corta um dos gemidos longínquos:

- e então, bispo frederíco, como andam as coisas no laboratório?

[não sei... talvez essa sentença possa ser dita em latim, naquele mais nobre dos latins. colocar alguma fumaça na cena, pode ser do cigarro de um brutamontes que vigia as entradas com um revólver cromado e silencioso. e há o anel. grande, vistoso, parecendo pesar uma tonelada naquelas mãos maculadas pelo sangue que o velho nem precisou encostar. anel reluzente. anel resplandescente. anel inconfundível. e aquele senhor nada frágil com suas olheiras...]

a resposta vem no tom mais submisso que se possa fazer soar em um diálogo literário. os olhos do bispo - que não são vistos naquela penumbra - miram o chão tão fortemente que poderiam avistar o subsolo com clareza.

- as coisas se encaminham conforme os planos, santíssimo bentinho. logo os laboratórios enviarão a primeira amostra. estará lacrada, mantida em um estabilizador iônico, térmico, feito com o que há de mais caro e moderno no que diz respeito à biotecnologia.

[bentinho: boa! huh.]

o rosto do homem do anel e vestido nas mais nobres fazendas é acrescido de um sorriso. que talvez não arrepiasse tanto, caso estampasse a face de uma criatura um tiquim menos horripilante. sorriso macabro. as olheiras ficam mais evidentes, mesmo no escuro.

- sua devoção será devidamente reconhecida, amigo frederíco - anuncia piedoso bentinho enquanto estende o anel monstruoso para que seu subordinado beije. mas o homem mais poderoso da igreja não tem amigos. assim que tiver a amostra em mãos, sacrificará o bispo que tão cegamente lhe serviu. com a alma um pouco mais quente, tentará ser bondoso e ordenará que a morte seja quase indolor. mas quase, que sem sangue e miúdo espalhado no chão da gruta, o romance fica sem graça.

primeiro capítulo feito. mas e agora, o que seriam as tais amostras? um vírus com potencial destrutivo e proliferativo infinitamente maior que o HIV? [para que essa juventude liberal entenda de vez que agora castidade is the law?]. uma bactéria exposta à diversas radiações que pode penetrar nos miolos dos maus-cristãos, modificando as ondas alfas e fazendo uma lavagem cerebral - a seco - em nome da unificação e fortalecimento da igreja católica? ou, quiçá, um clone de Jesus Cristo? [huh, gostei dessa. funcionaria bem para a conspiração da trama.]

não sei, sei não. o fato é que ver um ícone tão monstruoso tentando aparentar benevolência na transmissão ao vivo da globo atiçou minha imaginação junto da minha porção mais iconoclasta. e agora quero essa parte minha tão pobremente inventiva me dê as minhas respostas. quero saber o que a pompa, o cetim e o latim guardam, escondem. e tocar com minhas fazendas sem luxo essa verdade que eu mesma posso manipular, embora, talvez, ela seja dura feito os pilares que sustentam as capelas. dura feito o olhar desse papa gélido que vêm ao meu pobre paísinho condenar nosso molejo e urrar castidade. e nem beijar o chão beija.


May 12, 2007

porque eles dizem que quem é vivo sempre aparece...



...eu, particularmente, discordo dessa sentença que só enaltece o ressurgimento dos aglomerados de carbono em plena atividade orgânica. e os mortos, e os corpos em decomposição? pois eles costumam aparecer com freqüência considerável. seja nas noites de lua cheia ou no matagal mais próximo à sua casa. e não raro, ela - a freqüência - é até maior que a da reaparição de alguns vivos. exemplifiquemos com esse papa amedrontador que discursa castidade [huh!] pelas ruas paulistas. ou você acredita que esse cara ainda continua vivo? eu não. decididamente não.


***


TERESA, TERESINHA.












"o lar é a gente que faz, certo?", diz convicta dona Teresa, 55 anos, viúva, prendas domésticas. uma sentença ingênua como tentativa de omitir ou desconversar todos os projéteis que a vizinhança lança no casebre de madeira que ela quer alugar por duzentos reais. no alto do tão temido morro. o puxado nos fundos de sua casa cujas fechaduras são pitocos de madeira que mal-e-mal barram a portinhola. mas há a mobília, como frisa no anúncio posto nos classificados dominicais. aqueles móveis – bonitinhos até, arrumados com capricho de dona-de-casa e comprados em infinitas prestações – que orgulham ao riso a sua dona.

enquanto isso, além do portão mambembe de madeira e arame - que cheio de pretensões se põe a edificar a segurança quase patética da viúva e isolá-la daquele morro de vísceras e guerrilha banais – dois pré-adolescentes, um negro outro pardo, são punidos por carregarem em suas pochetes pequenas trouxinhas de maconha picoteada, embalada com até certo esmero. as [os?] trouxas eram bem pequenas. especialmente se comparadas com a força dos pontapés e socos lançados pelos homens fortes trajando imponentes uniformes com broches metálicos e brasões reluzentes.

nenhuma batida das redondezas era musical, mas ainda assim todas mantinham seu compasso contínuo, numérico, com força e som crescentes, com ritmos lancinantes. batidas que faziam jorrar o sangue das crianças – porque elas não passavam disso: crianças. o sangue era de verdade, espesso como deve ser. e a lei é da selva, do mais forte. a lei é dos que foram criados em colégios cristãos onde crianças negras são vistas com estranheza. isso quando são vistas. os colégios cheios de santos que a firme e católica teresa jamais pisou.

mas o lar, ahn, o lar é a gente que faz, prossegue Teresinha, carregando no "érrê", forjando surdez aos baques indisfarçáveis das pancadas. ou, quem sabe?, a surdez nem de longe é forjada. talvez ela seja uma conseqüência da crença inabalável de Teresa de que dentro dos limites de sua cerca de arame farpado reina a paz de um lar que ela mesma pode controlar, cada centímetro cúbico sob sua tutela. mesmo que a vizinhança cobice as roupas estendidas no varal e a mobília do carnê. mesmo que no próximo quarteirão se mate e se morra sem nenhuma nota no obituário local.

e Teresa, 55 anos, viúva, prendas domésticas, mantém seus ossos e músculos rijos para a peregrinação por seu lar que é assegurado por muralhas bem mais fortes que muros de concreto ou grades pontiagudas que arranham o céu. é mulher com aço e tutano pra defender o que acredita. e suas crenças não precisam de realidade sublime pra sobreviverem, precisam dessa coisa absurda que brota nos lugares mais pérfidos chamada fé. e a dona-de-casa ainda decidiu que se não alugar a “casa, 1 dormitório, c/ mobília” ainda nessa semana, trocará o texto do anúncio dos classificados por sua máxima: “o lar é a gente que faz.”. e apesar de achar a interjeição “certo?” das mais simpáticas, diz que não a utilizará.


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[Imagem: Tarsila do Amaral - Morro da Favela.]




Apr 23, 2007

os hormônios e o dia de são jorge.

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o próprio cabeçalho do blógue já avisa: sou uma redatora. quer dizer, um projeto mal-feito de uma, mas o que importa é esse "azinho" no final que me qualifica como ser do gênero feminino. e, mais ainda, que tal condição implica no fato de uma vez a cada santos vinte e oito dias eu também ser inundada por uma enxurrada de hormônios maléficos! diabólicos! [porque mesmo não sendo mulherzinha padrão, nem lendo NOVA, ELLE ou coisa que o valha, eu devo ser a pessoa mais suscetível às oscilações hormonais. pelo menos das que eu conheço.]

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sabe aquele caso da mulher que foi inocentada de um homicídio por alegar tensão pré-menstrual? poizé, caro leitor imaginário, sinto afirmar, mas nesse caso justiça [isso existe?] foi feita. só quem já padeceu na cruz de estrogênio e progesterona construída todo mês por qualquer par de ovários [o que inclui os de sua excelentíssima mãe] sabe o que é sobreviver a uma tpm. sair ilesa é impossível e nós, as mujeres, o sabemos desde os primórdios da menarca. o que se pode tentar é reduzir os danos ao mínimo possível. chocolates e ponstans até ajudam, mas são paliativos ineficientes quando se trata de uma catástrofe iminente. decisões sobre a vida? nem que se trate da cor do esmalte! melhor mesmo é quarto escuro, música triste [sugestão: ok computer - radiohead], edredon e - vá lá! - alguns docinhos. mas não daqueles que vêm em barras de um quilo, certo? [ pergunta retórica]

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pois não é que o coreano lélé da cuca massacrou 32 mesmo? óbvio que você sabe, não há maneira de não saber. eu, já devidamente calejada e escaldada, não me sensibilizei com o moço Cho Seung-Hui, nem com suas fotos e muito menos com a sua chacina particular. nem sei porque eu também me pego a mencioná-lo uma semana depois.

convenhamos: em um país em que as "gun shops" se proliferam ao lado das lanchonetes coisas dessas acontecem, aliás, não sei como as proporções não são maiores, não são de rotina. só confesso que fiquei meio chateada com o descaso dos nossos parceiros estado-unidenses acerca de seus psicóticos. que me perdoe a luta anti-manicomial, mas louquinho a gente interna, ao menos por um tempo, né?

[e o mais bizarro dessa história toda: a maneira que os bons moços do norte encontraram pra impedir episódios como esse é liberar o porte de armas dentro das universidades. há-há! imagina isso no brasil! é neguinho voando à bala por todo o canto!]

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não sei é por eu mesma gostar muito da banda ou por uma análise metódica de seus outros apreciadores, mas eu acho que absolutamente nenhum fã do jethro tull passaria à salvo num teste de sanidade mental. Ian Anderson e sua flautinha, então? de jeito nenhum! tudo louco, tudo maluco. [deixo claro que a parte da flautinha foi uma piadinha mal-feitinha. é até ofensa falar da magia de sopro do Ian assim...]

pois deixadas de lado as conclusões de minha mente nebulosa acerca do estado psíquico de gente que eu nem conheço, falo que a turnê deles iniciou dia vinte e um no rio de janeiro - o mesmo dia que o leonardo cantou lá no teixeirinha. huh.


porque a psicodelia, música clássica e mais as influências celtas estão excursionando acá nas terras tupiniquins. e hoje, vinte e três de abril, eles tocam em PoA, no teatro do Sesi. eu perco, eu perco. no hay grana. e a entrada custa cem barões...

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Apr 20, 2007

o bêbado e o desequílibrio

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ele era um bêbado. não que essa fosse a única categoria pra enquadrá-lo, só que termos feito cidadão de terceiro mundo ou latino-americano morto de fome não vinham à mente quando se sentia o hálito podre de cachaça e cárie de joão.

sim, esse era o seu nome. joão-bobo, joão-ninguém. ou joão-de-barro, como a ave ardilosa que faz do mundo bruto a sua casa.

mas joão não parecia passarinho. joão não parecia nada. era mais um rosto desfigurado no fundo do boteco do bairro. um homem que não sabe o que significa pós-moderno mas que abriga na barriga inchada também o vazio do nosso tempo.

nunca teve tino pra trapaça. nunca teve tino pra nada. um poeta de construção, outro faminto analfabeto. joão largado no meio do mundo de joãos e josés. joão abandonado por maria - que cheia de sonhos e mole de carnes, quis vida nova.

joão não mata. joão não rouba. nem ouve música ou vai ao teatro. é joão sentado no asfalto, é joão com sede.

sede de quê?

nem ser gente ele quer. sequer lágrima pra chorar por maria ele tem nos olhos vermelhos de birita e de tédio.

mas o herói anônimo não sabe empregar o termo tédio - sequer herói o anônimo é!

joão-bobo, joão-ninguém, joão no balcão, joão sem cigarro.

joão que não manipula seu dia porque suas mãos de unhas sujas só sabem tremer. que não espera por vida, não espera por morte.

joão que não espera.

por nada.



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Apr 16, 2007

a cidade noite adentro.

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me proponho, assim, a subir as ladeiras de terra batida e prosseguir por caminhos não usuais, cheios de silêncio e escuro. a empreitada começa no kit para minha aventura: um maço de cigarros, um terço de pacote de balas de goma e meia água mineral choca, pra garantir a hidratação.


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passeio na cidade natal. não uma mera caminhada na praça ou algumas voltas no quarteirão sendo guiada pela poodle idosa que costuma me acompanhar. dessa vez o passeio tem cunho filósofico, antropológico. quase um estudo quiçá científico de minhas raízes. me proponho, assim, a subir as ladeiras de terra batida e prosseguir por caminhos não usuais, cheios de silêncio e escuro. a empreitada começa no kit para minha aventura: um maço de cigarros, um pacote de balas de goma e meia água mineral choca, pra garantir a hidratação.

acho que a idéia de vagar a esmo pela cidadela começou porque preciso me adaptar pra voltar a viver nesse lugar. a vida aqui é mais mansa, têm seu ritmo próprio. se você tentar correr, com certeza vai tropeçar. ou, ainda, a excursão pelas ruelas mais pacatas tinha o propósito de fazer cessar a minha ira adolescente contra o território interiorano. afinal, todo o bom jovem do interior já urrou contra a falta de opções de sua cidade. isso na melhor das hipóteses, já que há rancores muito piores. mas o que me motivou de fato - se foi puro tédio ou a melhor das intenções -, francamente, nem eu posso responder.

poucas coisas mudaram nessas bandas. é verdade que há alguns prédios de arquitetura arrojada entre as avenidades centrais, alguns novos botecos e mercearias e que brotaram algumas ruas em lugares que eu nem imaginava. mas a essência de segurança que envolve os passos do visitante continua a mesma. essa sensação de prosaico com direito a fumacinha saindo das chaminés. uma certa felicidade vibrante até se apossou de mim quando percebi que através das cortinas alguns olhos curiosos me observavam passar. se era maldosamente ou não, não vem ao caso: o que me importa mesmo, é o interesse humano que figura por aqui. que, vá lá, dará fofocas sobre a origem da menina que passava pela noite fotografando bobagens e com tantas outras dessas dentro da cabeça. mas que, nem por isso, deixa de ser interesse.

depois de tantas esquinas dobradas, tantos morros escalados e tantos lugares revistos, decido que o gran-finale da noite de segunda só pode acontecer se eu for na pracinha central. mesmo com o novo calçadão e as outras novidades implementadas, o cheiro de lá haveria de continuar a exalar minhas quimeras e meus deleites infantis. balanço, escorregador, casinha no alto: tudo aquilo que levou consigo minhas tardes e minha imaginação. sento na escada fronteiriça ao play-ground [huh, nome bonito pruma pracinha] e fico a fumar um cigarro e divagar entre as borboletas brancas dos postes.

percebo, então, que o cheiro mudou. nem de longe aquele cheiro de pinga recendia à meiguice da minha infância. o acre da cachaça inundava o lugar, mesmo aberto, mesmo com vento. porque o trago, viesse de onde viesse, não era pequeno. e eis, após uma busca furtiva, que enxergo, entre incrédula e assustada, que dois indígenas consumavam seus atos coitais embaixo da casinha que um dia fora meu lar de mentirinha. e ao redor deles estavam três garrafas plásticas, daquele tipo que invariavelmente embala aguardente. não sofri abalos com a cena. ao contrário, tinha vontade de continuar parada no mesmo lugar e observar tudo à distância. e não por voyeurismo étnico, eu esclareço. mas virei as costas, para tentar dar-lhes um pingo de privacidade - coisa com que eles, aparentemente, não se importavam nada. subo os degraus e ensaio meus primeiros passos de volta para casa. deixo que sananduva, os índios, as garrafas, a bituca do meu cigarro sejam todos tragados pela noite preguiçosa que os envolve. porque chegou minha hora de ir pra junto dela também.





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Apr 13, 2007

coisas da vida.

a prosa de Kurt Vonnegut não foi leve. sua voz incisiva, sua ironia apurada e tramada e suas idéias tão lúcidas que beiram o incoerente trataram de deixar marcas profundas desde a geração que foi assombrada pelo sangue escorrido no vietnã. é de sua autoria a chamada bíblia anti-guerra, Matadouro 5, publicado em 1969. trata-se de uma obra que mistura relatos reais dos bombardeios dos Aliados contra a cidade de Dresden, ficção científica, delírios, fusões no estilo - com comentários do narrador sobre a narrativa e até da narrativa sobre o narrador - e, especialmente, talento.





a estréia do escritor se deu no ano de 1952, com o romance Player Piano. após, houve uma sucessão de treze obras. em comum, todas elas caracterizam-se por não serem palpáveis, por fugirem aos lugares comuns com a liberdade que só a aptidão literária incomum do autor poderia proporcionar. é fino humor pra desforra, é prosa pra se rir chorando e se chorar rindo: a seriedade filosófica a que se depara nos aspectos abordados não impede que a leitura seja agradável. o desfecho da bibliografia foi selado em 1997 com o romance Tremor do Tempo.

e foi quarta-feira, dia 11 de abril que um dos maiores escritores vivos perde seu status de... ... vivo. devida a uma queda sofrida há semanas, o romancista foi vítima de lesão cerebral que ocasionou sua morte, aos 84 anos. - coisas da vida, um cacoete que ele mesmo repete à exaustão em Matadouro 5. fato consumado que essa é a melhor forma de encarar a morte: como uma coisa da vida, inerente à vida, conseqüência da vida. ou seja: uma parte indissociável dela.

[... e que pra manifestar os meus pêsames, isentos desse luto teatral diante da falência de nossas frágeis existências, só posso usar de outro cacoete de vonnegut, do romance O Pastelão - Ou Solitário Nunca Mais: - ai ô!]

***

"...não há telegramas em Tralfamador. Mas o senhor tem razão: cada grupo de símbolos é uma mensagem breve e urgente descrevendo uma situação, uma cena. Nós tralfamadorianos os lemos lemos todos de uma vez e não um após o outro. Não há qualquer relacionamento especial entre as mensagens, exceto que o autor as escolheu cuidadosamente, de tal forma que quando nós as vemos todas de uma vez, elas reproduzem uma imagem de vida que é bonita, supreendente e profunda. Não há começo, nem meio, nem fim, nem suspense, nem moral, nem causas, nem efeitos. O que amamos em nossos livros são as profundidades de vários momentos sublimes vistos todos de uma vez só.

[Vonnegut, Kurt. Matadouro 5. Editora LP&M. p. 96]

Apr 2, 2007

o otimismo da segunda. huh.

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do dia morto. do dia sem saco nenhum. do dia frustrante. do dia em que nada acontece e que, mesmo se acontecesse, só serviria pra um ou outro deboche ou qualquer sentença tímida e rançosa que declarasse puro enfado. talvez essa fosse uma boa segunda-feira pra destruir alguns tecidos tragando gim fervente. mas até quanto à minha auto-mutilação eu ando indiferente. tanto faz abrir feridas purulentas nas vísceras ou não. numa segunda-feira como essa o que se faz tentando destruir - ou, vá lá, salvar - a alma [lama!] é inútil.


[tosse, tosse.]



quê faço eu? sacudo os ombros, cato um cigarro e deixo que o moço drummond de andrade fale por mim. ele é bem mais eloqüente. infinitamente mais eloqüente, pra ser exata. e suas linhas fluem, apedrejam capelas, cospem ácido, penetram e se escondem nos recônditos mais improváveis de qualquer bendita criatura. é o tipo de verso que cuja leitura não se pode reverter. não há escape ileso.






OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: "Meu Deus".
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: "Meu amor",
porque o amor resultou inútil.
E os olhos não mais choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Fiscaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa que venha a velice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo,
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios,
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.



[Carlos Drummond de Andrade].


[imagem: Drummond e a pedra no caminho: caricatura de Alvarus, 1941]


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