Martin Munkacsi.
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Quer dizer, muito disso que a gente vive é feito de repetição. Diária, rotina, segunda-terça-quarta-quinta-sexta, lá ou cá, viajando ou em casa, de sofá e moletom grande, a tv ligada mas sem som, a tv moderna muda, imagens refletidas na sala. Somos todos repetitivos, exaustivos por isso, mas por mais que tal repetitividade remeta imediatamente à "chatice", sem elas somos incapazes de existir. Eu sou.
Todo o dia o "viagra social" (paroxetina das genéricas, azuizinhas, inclusive). Todo o dia o anticoncepcional caro e de dosagem baixa de hormônios pra não inchar, ter tpms estrondosas e me aurar de espinhas purulentas. E ai de mim se um belo dia me revoltar contra minha medicação. No mínimo terei uma crise depressiva por falta de neurotransmissores e odiarei ao mundo, à vida e à existência, e até à arte, sem nenhuma razão aparente. No máximo terei um filho, com tudo que é um filho, o imensurável de gerar uma vida que, se mesmo dependente à própria, é alheia. Certas vezes me pergunto se já não estou como um daqueles loucos institucionalizados tão recorrentes no cinema. Aqueles que entram na fila indiana afoitos pelo copinho de café plástico descartável contendo coloridas, pequenas e deliciosas pílulas.
Mas, claro, eu jamais domaria meus rompantes insanos e lúdicos ou minha loucura perene a base de repetição. Talvez até conseguisse, se tentasse e quisesse. Mas peço “oxalá!”, me livre e guarde. Se os dias jamais me surpreendessem e toda a minha vida fosse de disciplina e rotina feito a exigência de meus remédios eu já estaria morta. É um conceito interessante pra morte, não? Uma coisa eterna e cíclica, hoje-ontem-amanhã não existem, são o mesmo e não são.
Se a metade mais um, uma maioria pequena da vida é do que certamente se fará sempre e desprovida de qualquer rota possível de fuga - das funções vegetativas às manias - há a metade menos um é do que pode ser novo. Pode, é só uma possibilidade. Na verdade é uma escolha. Pode-se abrir os sentidos, os olhos, os ouvidos, sentir e aprender e observar atento a novidade. Pode-se até abocanhá-la de uma só vez. Mas em oposto, completo oposto, há a reclusão, a soberba, o medo e a maldade de espírito, as mesquinharias bem pequenas e vermelhas. E se elas estiverem no recinto, o novo nem bate à porta, nem chega em frente ao portão. O novo é necessário, alguns o sabem outros o ignoram. O novo quer ser bem recebido, quer atenção. O novo é indispensável pros aventureiros, ainda bem que existe gente que se alimenta de reciclagem e aventura.
O mais fascinante de tudo é que mesmo que a novidade seja geniosa quanto ao estado do espírito que irá recebê-la, ela também é simples e gosta de dar as caras exatamente no que é visto, feito ou vivido todo o santo dia. Uma flor de nova cor, as pétalas numa abertura um tanto tímida, a formosura plena ainda por vir...; é sempre novo. Um mesmo beijo não é compartilhado quando se tem amor, amor intenso e completo como só pode ser o amor quando é amor, os amantes trocam carícias pelos lábios que são sempre descobertas, as sensações de arrepio sempre novas. Uma poesia relembrada na memória agora mais cheia e cheia de coisas e vivências não é a mesma poesia, as palavras saltitam e alcançam diferentes lugares do corpo, da mente, da língua. Uma sobremesa pode ter até a mesma dosagem e os mesmos ingredientes da outra que se experimentou na semana passada, creme de leite, biscoito e chocolate, mas o carinho e trabalho de quem a preparou certamente trará sabores novos às papilas. E também o vinho, o suco, o almoço que seja de arroz e feijão. A vida se desabrocha, a novidade é como ondas de cor no ar, que só consegue ver quem quer. Um mesmo rio não é visto duas vezes.
1 comment:
Passarei sempre para ler o silêncio que há em nós...
Aproveitando, linkei seu blog ao meu... Abraços
Eduardus Poeta
http://reticenciaspoeticas.blogspot.com
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