Nov 27, 2007

Sobre a pobre pequena no Pará [e ainda sobre as mulheres]

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Cena corriqueira e cotidiana: uma feminista é tida como chata e recalcada. Ao mesmo tempo, garanto, em diversos lugares. Ainda há o estigma, a rotulação que titula feminista de mulher teimosa, chata e possivelmente descontente com sua aparência física e/ou assexuada. São os lugares comuns incorporados e reincorporados na sociedade como uma praga. O feminismo real só clama dignidade e justiça. Só vê fatos. Mulheres são mulheres. Homens são homens. Negros são negros. Gays são gays. É a diferença. Pedir e bradar por mais dignidade para gêneros sabida e historicamente desfavorecidos, medidas que os assentem e que exaltem exatamente as iniqüidades não é nenhum ato estapafúrdio. Antes um gesto bonito, nobre e importante.
Tá aí o Pará, latejando no meu estômago e ardendo no meu coração. Provavelmente no de todos. Uma CRIANÇA de 15 ANOS. Uma pequena atirada ao seu azar em uma jaula com vinte fascínoras viris varões capazes de atrocidades que despertam repulsa. Durante vinte dias a menininha foi incessavelmente abusada. Um estupro só, praticamente único, que durou absurdos vinte dias. Junto à fome, aos maus-tratos, à desgraça. Era uma criança sendo devorada aos poucos e ninguém viu. Dizem, seus conterrâneos que ela gritava, nas entrevistas que vi na TV. Um castigo hediondo e cruel, que não só aflige os direitos das crianças e das mulheres, como os humanos. E qual foi o crime mesmo? Aliás, importa?

Descobriram já que não foi só ela a mulher desprezada pela lei – que deveria, ironicamente, garantir os direitos das próprias – no Pará. Brotam pelos cantos casos como esses por lá. Eu me estarreço mais ao constatar que a senhora governadora é uma espécie do gênero feminino, o que ao menos deveria garantir um pingo da sensibilidade característica. Quer dizer que naquelas bandas a mulher que estiver devendo às leis e à ordem pagará com castigos que a ferirão não só fisicamente [hediondamente, como mostrado com a menor], mas moralmente, e perderá por completo dignidade, por todas as cidades? Que tipo de retrocesso desumano é esse que assola o norte do país?

Se as feministas são chatas, elas vêem que há raízes profundas de desvalorização, desfiguração e desrespeito às mulheres. A cada quantos segundos uma nova é espancada no extenso Brasil mesmo? Com que freqüência por minuto ocorre um estupro? Quantas vezes uma garota se submete a sentenças machistas ou se sente violada e desrespeitada diariamente? Quantas vezes se sente insegura e frágil diante de uma sociedade que teima em se manter voltada a um paternalismo caucasiano? Além do quase destino cármico que se estabelece na vida de uma mulher negra no país, segundo as estatísticas, que só escapará da sina de empregada doméstica com muita garra e determinação. Ganhar menos do que os homens é outra realidade que também assola, mas que até parece menos preocupante quando consideradas todas as outras rodas do moinho dessa estrutura social corrompida desde sempre.
Não vi, mas dizem os jornais que a compleição física da pobre menina do Pará era de ainda mais jovem do que sua idade real, míseros quinze aninhos. Na matéria, o pai dela conta que foi ameaçado pelos policiais do município para que falsificasse a certidão de nascimento, transformando a jovem em maior. Caso contrário seria preso. Não vi, mas imagino doloridamente a menina sendo deflorada por todos os instantes, imagino o medo, a dor, a raiva, a angústia, o abandono que ela sentiu. Não vejo, mas tento vislumbrar um jeito, uma saída, pra todas essas falhas aterrorizantes, essas maldades geladas, essa menina que deve estar trêmula de trauma. Pra ela, o mal já está feito, as chagas já foram abertas, reabertas, penetradas, maltratadas, queimadas a cigarro, violentadas. Quantas novas chagas por aí foram abertas e reabertas enquanto eu escrevi estas linhas?

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2 comments:

Anonymous said...

Então num momento de entusiasmo ou desespero ou me apego a estes lindos fatos... Eu que nesse momento faço uma reportagem poética, sobre um gaúcho de Porto Alegre - comparo com teu simples texto... Pedes-me se o arrepio tomou conta da minha pele? Sim, meu pelos do braço ficaram em pé, parecem espinhos... E gritam desesperadamente para penetrar sem dó o olho da justiça brasileira. Advogados, juizes, policiais, dementes envolvidos num circulo escandaloso como é a espelunca do congresso... Tudo aqui, principalmente o infeliz norte, escasso de camisinha, pois acredito que naquela cela, foi a olho nu. A olho nu e cego...

Belo texto... Nate...
pobre criança

Giu

Mateus said...

Ainda me pergunto: cadê o ser humano?