May 12, 2007

porque eles dizem que quem é vivo sempre aparece...



...eu, particularmente, discordo dessa sentença que só enaltece o ressurgimento dos aglomerados de carbono em plena atividade orgânica. e os mortos, e os corpos em decomposição? pois eles costumam aparecer com freqüência considerável. seja nas noites de lua cheia ou no matagal mais próximo à sua casa. e não raro, ela - a freqüência - é até maior que a da reaparição de alguns vivos. exemplifiquemos com esse papa amedrontador que discursa castidade [huh!] pelas ruas paulistas. ou você acredita que esse cara ainda continua vivo? eu não. decididamente não.


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TERESA, TERESINHA.












"o lar é a gente que faz, certo?", diz convicta dona Teresa, 55 anos, viúva, prendas domésticas. uma sentença ingênua como tentativa de omitir ou desconversar todos os projéteis que a vizinhança lança no casebre de madeira que ela quer alugar por duzentos reais. no alto do tão temido morro. o puxado nos fundos de sua casa cujas fechaduras são pitocos de madeira que mal-e-mal barram a portinhola. mas há a mobília, como frisa no anúncio posto nos classificados dominicais. aqueles móveis – bonitinhos até, arrumados com capricho de dona-de-casa e comprados em infinitas prestações – que orgulham ao riso a sua dona.

enquanto isso, além do portão mambembe de madeira e arame - que cheio de pretensões se põe a edificar a segurança quase patética da viúva e isolá-la daquele morro de vísceras e guerrilha banais – dois pré-adolescentes, um negro outro pardo, são punidos por carregarem em suas pochetes pequenas trouxinhas de maconha picoteada, embalada com até certo esmero. as [os?] trouxas eram bem pequenas. especialmente se comparadas com a força dos pontapés e socos lançados pelos homens fortes trajando imponentes uniformes com broches metálicos e brasões reluzentes.

nenhuma batida das redondezas era musical, mas ainda assim todas mantinham seu compasso contínuo, numérico, com força e som crescentes, com ritmos lancinantes. batidas que faziam jorrar o sangue das crianças – porque elas não passavam disso: crianças. o sangue era de verdade, espesso como deve ser. e a lei é da selva, do mais forte. a lei é dos que foram criados em colégios cristãos onde crianças negras são vistas com estranheza. isso quando são vistas. os colégios cheios de santos que a firme e católica teresa jamais pisou.

mas o lar, ahn, o lar é a gente que faz, prossegue Teresinha, carregando no "érrê", forjando surdez aos baques indisfarçáveis das pancadas. ou, quem sabe?, a surdez nem de longe é forjada. talvez ela seja uma conseqüência da crença inabalável de Teresa de que dentro dos limites de sua cerca de arame farpado reina a paz de um lar que ela mesma pode controlar, cada centímetro cúbico sob sua tutela. mesmo que a vizinhança cobice as roupas estendidas no varal e a mobília do carnê. mesmo que no próximo quarteirão se mate e se morra sem nenhuma nota no obituário local.

e Teresa, 55 anos, viúva, prendas domésticas, mantém seus ossos e músculos rijos para a peregrinação por seu lar que é assegurado por muralhas bem mais fortes que muros de concreto ou grades pontiagudas que arranham o céu. é mulher com aço e tutano pra defender o que acredita. e suas crenças não precisam de realidade sublime pra sobreviverem, precisam dessa coisa absurda que brota nos lugares mais pérfidos chamada fé. e a dona-de-casa ainda decidiu que se não alugar a “casa, 1 dormitório, c/ mobília” ainda nessa semana, trocará o texto do anúncio dos classificados por sua máxima: “o lar é a gente que faz.”. e apesar de achar a interjeição “certo?” das mais simpáticas, diz que não a utilizará.


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[Imagem: Tarsila do Amaral - Morro da Favela.]




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