Apr 23, 2007

os hormônios e o dia de são jorge.

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o próprio cabeçalho do blógue já avisa: sou uma redatora. quer dizer, um projeto mal-feito de uma, mas o que importa é esse "azinho" no final que me qualifica como ser do gênero feminino. e, mais ainda, que tal condição implica no fato de uma vez a cada santos vinte e oito dias eu também ser inundada por uma enxurrada de hormônios maléficos! diabólicos! [porque mesmo não sendo mulherzinha padrão, nem lendo NOVA, ELLE ou coisa que o valha, eu devo ser a pessoa mais suscetível às oscilações hormonais. pelo menos das que eu conheço.]

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sabe aquele caso da mulher que foi inocentada de um homicídio por alegar tensão pré-menstrual? poizé, caro leitor imaginário, sinto afirmar, mas nesse caso justiça [isso existe?] foi feita. só quem já padeceu na cruz de estrogênio e progesterona construída todo mês por qualquer par de ovários [o que inclui os de sua excelentíssima mãe] sabe o que é sobreviver a uma tpm. sair ilesa é impossível e nós, as mujeres, o sabemos desde os primórdios da menarca. o que se pode tentar é reduzir os danos ao mínimo possível. chocolates e ponstans até ajudam, mas são paliativos ineficientes quando se trata de uma catástrofe iminente. decisões sobre a vida? nem que se trate da cor do esmalte! melhor mesmo é quarto escuro, música triste [sugestão: ok computer - radiohead], edredon e - vá lá! - alguns docinhos. mas não daqueles que vêm em barras de um quilo, certo? [ pergunta retórica]

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pois não é que o coreano lélé da cuca massacrou 32 mesmo? óbvio que você sabe, não há maneira de não saber. eu, já devidamente calejada e escaldada, não me sensibilizei com o moço Cho Seung-Hui, nem com suas fotos e muito menos com a sua chacina particular. nem sei porque eu também me pego a mencioná-lo uma semana depois.

convenhamos: em um país em que as "gun shops" se proliferam ao lado das lanchonetes coisas dessas acontecem, aliás, não sei como as proporções não são maiores, não são de rotina. só confesso que fiquei meio chateada com o descaso dos nossos parceiros estado-unidenses acerca de seus psicóticos. que me perdoe a luta anti-manicomial, mas louquinho a gente interna, ao menos por um tempo, né?

[e o mais bizarro dessa história toda: a maneira que os bons moços do norte encontraram pra impedir episódios como esse é liberar o porte de armas dentro das universidades. há-há! imagina isso no brasil! é neguinho voando à bala por todo o canto!]

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não sei é por eu mesma gostar muito da banda ou por uma análise metódica de seus outros apreciadores, mas eu acho que absolutamente nenhum fã do jethro tull passaria à salvo num teste de sanidade mental. Ian Anderson e sua flautinha, então? de jeito nenhum! tudo louco, tudo maluco. [deixo claro que a parte da flautinha foi uma piadinha mal-feitinha. é até ofensa falar da magia de sopro do Ian assim...]

pois deixadas de lado as conclusões de minha mente nebulosa acerca do estado psíquico de gente que eu nem conheço, falo que a turnê deles iniciou dia vinte e um no rio de janeiro - o mesmo dia que o leonardo cantou lá no teixeirinha. huh.


porque a psicodelia, música clássica e mais as influências celtas estão excursionando acá nas terras tupiniquins. e hoje, vinte e três de abril, eles tocam em PoA, no teatro do Sesi. eu perco, eu perco. no hay grana. e a entrada custa cem barões...

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Apr 20, 2007

o bêbado e o desequílibrio

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ele era um bêbado. não que essa fosse a única categoria pra enquadrá-lo, só que termos feito cidadão de terceiro mundo ou latino-americano morto de fome não vinham à mente quando se sentia o hálito podre de cachaça e cárie de joão.

sim, esse era o seu nome. joão-bobo, joão-ninguém. ou joão-de-barro, como a ave ardilosa que faz do mundo bruto a sua casa.

mas joão não parecia passarinho. joão não parecia nada. era mais um rosto desfigurado no fundo do boteco do bairro. um homem que não sabe o que significa pós-moderno mas que abriga na barriga inchada também o vazio do nosso tempo.

nunca teve tino pra trapaça. nunca teve tino pra nada. um poeta de construção, outro faminto analfabeto. joão largado no meio do mundo de joãos e josés. joão abandonado por maria - que cheia de sonhos e mole de carnes, quis vida nova.

joão não mata. joão não rouba. nem ouve música ou vai ao teatro. é joão sentado no asfalto, é joão com sede.

sede de quê?

nem ser gente ele quer. sequer lágrima pra chorar por maria ele tem nos olhos vermelhos de birita e de tédio.

mas o herói anônimo não sabe empregar o termo tédio - sequer herói o anônimo é!

joão-bobo, joão-ninguém, joão no balcão, joão sem cigarro.

joão que não manipula seu dia porque suas mãos de unhas sujas só sabem tremer. que não espera por vida, não espera por morte.

joão que não espera.

por nada.



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Apr 16, 2007

a cidade noite adentro.

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me proponho, assim, a subir as ladeiras de terra batida e prosseguir por caminhos não usuais, cheios de silêncio e escuro. a empreitada começa no kit para minha aventura: um maço de cigarros, um terço de pacote de balas de goma e meia água mineral choca, pra garantir a hidratação.


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passeio na cidade natal. não uma mera caminhada na praça ou algumas voltas no quarteirão sendo guiada pela poodle idosa que costuma me acompanhar. dessa vez o passeio tem cunho filósofico, antropológico. quase um estudo quiçá científico de minhas raízes. me proponho, assim, a subir as ladeiras de terra batida e prosseguir por caminhos não usuais, cheios de silêncio e escuro. a empreitada começa no kit para minha aventura: um maço de cigarros, um pacote de balas de goma e meia água mineral choca, pra garantir a hidratação.

acho que a idéia de vagar a esmo pela cidadela começou porque preciso me adaptar pra voltar a viver nesse lugar. a vida aqui é mais mansa, têm seu ritmo próprio. se você tentar correr, com certeza vai tropeçar. ou, ainda, a excursão pelas ruelas mais pacatas tinha o propósito de fazer cessar a minha ira adolescente contra o território interiorano. afinal, todo o bom jovem do interior já urrou contra a falta de opções de sua cidade. isso na melhor das hipóteses, já que há rancores muito piores. mas o que me motivou de fato - se foi puro tédio ou a melhor das intenções -, francamente, nem eu posso responder.

poucas coisas mudaram nessas bandas. é verdade que há alguns prédios de arquitetura arrojada entre as avenidades centrais, alguns novos botecos e mercearias e que brotaram algumas ruas em lugares que eu nem imaginava. mas a essência de segurança que envolve os passos do visitante continua a mesma. essa sensação de prosaico com direito a fumacinha saindo das chaminés. uma certa felicidade vibrante até se apossou de mim quando percebi que através das cortinas alguns olhos curiosos me observavam passar. se era maldosamente ou não, não vem ao caso: o que me importa mesmo, é o interesse humano que figura por aqui. que, vá lá, dará fofocas sobre a origem da menina que passava pela noite fotografando bobagens e com tantas outras dessas dentro da cabeça. mas que, nem por isso, deixa de ser interesse.

depois de tantas esquinas dobradas, tantos morros escalados e tantos lugares revistos, decido que o gran-finale da noite de segunda só pode acontecer se eu for na pracinha central. mesmo com o novo calçadão e as outras novidades implementadas, o cheiro de lá haveria de continuar a exalar minhas quimeras e meus deleites infantis. balanço, escorregador, casinha no alto: tudo aquilo que levou consigo minhas tardes e minha imaginação. sento na escada fronteiriça ao play-ground [huh, nome bonito pruma pracinha] e fico a fumar um cigarro e divagar entre as borboletas brancas dos postes.

percebo, então, que o cheiro mudou. nem de longe aquele cheiro de pinga recendia à meiguice da minha infância. o acre da cachaça inundava o lugar, mesmo aberto, mesmo com vento. porque o trago, viesse de onde viesse, não era pequeno. e eis, após uma busca furtiva, que enxergo, entre incrédula e assustada, que dois indígenas consumavam seus atos coitais embaixo da casinha que um dia fora meu lar de mentirinha. e ao redor deles estavam três garrafas plásticas, daquele tipo que invariavelmente embala aguardente. não sofri abalos com a cena. ao contrário, tinha vontade de continuar parada no mesmo lugar e observar tudo à distância. e não por voyeurismo étnico, eu esclareço. mas virei as costas, para tentar dar-lhes um pingo de privacidade - coisa com que eles, aparentemente, não se importavam nada. subo os degraus e ensaio meus primeiros passos de volta para casa. deixo que sananduva, os índios, as garrafas, a bituca do meu cigarro sejam todos tragados pela noite preguiçosa que os envolve. porque chegou minha hora de ir pra junto dela também.





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Apr 13, 2007

coisas da vida.

a prosa de Kurt Vonnegut não foi leve. sua voz incisiva, sua ironia apurada e tramada e suas idéias tão lúcidas que beiram o incoerente trataram de deixar marcas profundas desde a geração que foi assombrada pelo sangue escorrido no vietnã. é de sua autoria a chamada bíblia anti-guerra, Matadouro 5, publicado em 1969. trata-se de uma obra que mistura relatos reais dos bombardeios dos Aliados contra a cidade de Dresden, ficção científica, delírios, fusões no estilo - com comentários do narrador sobre a narrativa e até da narrativa sobre o narrador - e, especialmente, talento.





a estréia do escritor se deu no ano de 1952, com o romance Player Piano. após, houve uma sucessão de treze obras. em comum, todas elas caracterizam-se por não serem palpáveis, por fugirem aos lugares comuns com a liberdade que só a aptidão literária incomum do autor poderia proporcionar. é fino humor pra desforra, é prosa pra se rir chorando e se chorar rindo: a seriedade filosófica a que se depara nos aspectos abordados não impede que a leitura seja agradável. o desfecho da bibliografia foi selado em 1997 com o romance Tremor do Tempo.

e foi quarta-feira, dia 11 de abril que um dos maiores escritores vivos perde seu status de... ... vivo. devida a uma queda sofrida há semanas, o romancista foi vítima de lesão cerebral que ocasionou sua morte, aos 84 anos. - coisas da vida, um cacoete que ele mesmo repete à exaustão em Matadouro 5. fato consumado que essa é a melhor forma de encarar a morte: como uma coisa da vida, inerente à vida, conseqüência da vida. ou seja: uma parte indissociável dela.

[... e que pra manifestar os meus pêsames, isentos desse luto teatral diante da falência de nossas frágeis existências, só posso usar de outro cacoete de vonnegut, do romance O Pastelão - Ou Solitário Nunca Mais: - ai ô!]

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"...não há telegramas em Tralfamador. Mas o senhor tem razão: cada grupo de símbolos é uma mensagem breve e urgente descrevendo uma situação, uma cena. Nós tralfamadorianos os lemos lemos todos de uma vez e não um após o outro. Não há qualquer relacionamento especial entre as mensagens, exceto que o autor as escolheu cuidadosamente, de tal forma que quando nós as vemos todas de uma vez, elas reproduzem uma imagem de vida que é bonita, supreendente e profunda. Não há começo, nem meio, nem fim, nem suspense, nem moral, nem causas, nem efeitos. O que amamos em nossos livros são as profundidades de vários momentos sublimes vistos todos de uma vez só.

[Vonnegut, Kurt. Matadouro 5. Editora LP&M. p. 96]

Apr 2, 2007

o otimismo da segunda. huh.

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do dia morto. do dia sem saco nenhum. do dia frustrante. do dia em que nada acontece e que, mesmo se acontecesse, só serviria pra um ou outro deboche ou qualquer sentença tímida e rançosa que declarasse puro enfado. talvez essa fosse uma boa segunda-feira pra destruir alguns tecidos tragando gim fervente. mas até quanto à minha auto-mutilação eu ando indiferente. tanto faz abrir feridas purulentas nas vísceras ou não. numa segunda-feira como essa o que se faz tentando destruir - ou, vá lá, salvar - a alma [lama!] é inútil.


[tosse, tosse.]



quê faço eu? sacudo os ombros, cato um cigarro e deixo que o moço drummond de andrade fale por mim. ele é bem mais eloqüente. infinitamente mais eloqüente, pra ser exata. e suas linhas fluem, apedrejam capelas, cospem ácido, penetram e se escondem nos recônditos mais improváveis de qualquer bendita criatura. é o tipo de verso que cuja leitura não se pode reverter. não há escape ileso.






OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO

Chega um tempo em que não se diz mais: "Meu Deus".
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: "Meu amor",
porque o amor resultou inútil.
E os olhos não mais choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Fiscaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa que venha a velice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo,
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios,
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.



[Carlos Drummond de Andrade].


[imagem: Drummond e a pedra no caminho: caricatura de Alvarus, 1941]


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