Oct 11, 2007

reatada com o blógue.

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Os jornais amarelam e o pó se posta aos montes na prateleira. É ele, gigante, retumbante, o tempo liberando seu ocre e deixando sua lembrança aos alérgicos. Também este pequeno club, estas arestas que abrigam umas ou outras idéias, as cadeiras, o palco, tudo parece anunciar com pó e assobios a passagem da grandeza que não se mede, todo o inominável que deixa pra trás o calendário. Que hajam teias pelos cantinhos ou no forro de meu pequeno club retirado de todo o mais, que não haja ruído algum, só copos quebrados. Há horas de limpeza e desconstrução. Assim, ordem irreversível, o demolir pra reconstruir. Pôr abaixo paredes, pôr abaixo imagens, certezas e abstrações tolas. E ficar com o essencial. Hora de retomar.
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DIAS GOSTOSOS



















Ela estendeu a mão e acendeu o primeiro cigarro da manhã. À rede. Um balanço preguiçoso, até o vento despertava leve, espreguiçando-se pelos lados, sem direção. Uña chica passava na trilha de areia e mato enquanto observava os pássaros derramando seus sons pelo céu, parou alguns segundos, cumprimentou-a mansa, com aqueles dengos de quem acabou de acordar, e com simpatia incomum aos desconhecidos. Todos os desconhecidos eram assim no bairro, simpáticos, agradáveis. Mas ainda era cedo e não haviam trânsito nas trilhas de areia fofa. Não havia nem barulho. Só o azulão além das dunas, aquele bocado de mar que suga, hipnotiza, diverte, encanta, é que estava bravio na matina. A fúria das ondas que estouravam e da maré que acabava de baixar se postavam aos ouvidos, embora, um pouco distantes. Aquele ruído de fundo acalentando o sono também era conforto ao despertar. As sensações de um paraíso quieto, primitivo, lindo eram as de todo o dia. De fato, um paraíso.

Todas as horas transcendiam assim, leves, para a menina que se adaptava à vida no lugar ermo. Não ermo daquele jeito enfadonho, horas e horas desperdiçadas, como se fossem todos dias comuns. As coisas aconteciam, ressoavam, vinham de encontro a ela naquele ponto de paz que lhe abrigava. Todo o instante acontecia, festivo, tenso, produtivo. Mas, em geral, o clima sempre acabava tendendo ao bucolismo, ao despretencioso, ao aconchegante. A rede para os cigarros, os livros que, enfim, tinha tempo para ler, a areia fofa pra enfiar os pés, as poucas roupas de caimento solto, soltíssimo, meros pedaçotes de pano a tapar cá e lá, um Caetano jovem e inebriado de litoral no vinil e, por fim, o mar ali adiante – água gelada feito bálsamo pra alma e um descanso infinito pra vista.

“Dias gostosos”. A única frase com que a menina de cabelos grandes e pele avermelhada se acostumando ao sol podia definir seu novo tempo. Era tudo novidade, ela não estava acostumada com tanta candura, tanta beleza, tanto sol. Vinha de um lugar frio e gostava das noites geladas de seu antigo lar. Mas as sensações são diferentes no litoral. Mais aprazíveis, inclusive. Preocupações esdrúxulas da vida urbanóide somem. Sobram as angústias reais com o que é verdadeiramente importante. O essencial.

Era gosto. Gosto de fazer as coisas. Tudo meio gingado e embalado, a própria rotina não entediava. De oposto: saber que hoje faria as mesmas coisas de ontem alegrava ela. Porque mesmo repetidas, as coisas eram prazerosas, de forma ou outra. Uma caminhada na beira da praia não seria igual à de ontem. Um entardecer não era igual a outro. Mas mesmo assim, em todos os torpores da partida do astro-rei, a cada dia mirando-o partir ela declamava mentalmente os versos de Cruz & Sousa, simbolista local:“Indefiníveis músicas supremas/ Harmonias da cor e do perfume/ Horas do acaso, trêmulas, extremas/ Réquiem do Sol que a dor da luz resume.”

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