Mar 1, 2007

menino do churro

o menininho se encontra livre pra ousar em seus passos: já não há bandeja pra ser equilibrada. e todos se reúnem pra armar o guarda-sol e sentir a brisa do mar.


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o menino caminhava trôpego. suas perninhas curtas não conseguiam dar os passos do tamanho necessários à areia mole. seu porte era de seis ou sete anos. cabelos loiros amarelados pelo sol e pele também destrata pelo astro rei - especialmente no caso de uma criança. nas mãos, uma bandeja de aluminío. e organizados em encardidos canos de p.v.c estavam churros. churros feios, nem um pouco apetitosos.

eu saía do mar e detinha meu olhar no menino que tropeçava em minha direção. estávamos na praia de ingleses – lugar meio família, abarrotado de argentinos, de admirável costa e que esconde os recônditos onde a mais bela das estéticas mora. a temperatura era alta, os raios atingiam a derme feito milhões de pequenas agulhas. não haviam meios de se suportar uma areia clara e pronta pra refletir a densidade do calor naquela hora. mas, mesmo assim, o menino encavara aquele aglomerado de grãos incandescentes com bravura comovente. porque heroísmo mesmo é uma criança agüentar o que nem eu mesma agüentaria e com a cara límpida de expressão e lustra de suor. e não havia contrariedade alguma no rosto do menino.

há alguns passos pequenos de onde eu estava, eis que as perninhas do garoto se arcam num tropeço. é menininho ainda descordenado: ele vai ao chão. e junto de seu corpinho magro, cai a bandeja. um a um os churros têm seu açúcar misturado com aquela areia branca e fina. uma família argentina ajuda o menino a recolher os doces. ele iça a bandeja e continua sua marcha funesta. ele não vislumbra a idéia de parar um pouco seus passinhos moles. deve chegar ao rochedo do outro lado da costa. o menino litorâneo não pode se dar ao luxo de se refrescar no verão de calor interminável. não quando se precisa vender os churros. mesmo que nem o descanso e nem o alívio das ondas pra aplacar seu suor venham.

quando a peregrinação lenta do pequeno menino o trouxe até diante de mim, o pedi que me vendesse um churro. não, eu não comeria a massa frita cravejada de areia. e, sim, eu me sinto culpada por estimular a sofreguidão comercial ao qual o menino se submete. mas precisava ajudá-lo de alguma forma. a mais sensata que encontrei foi esta. a verdade é que aquele dinheiro lhe era importante. como poderia eu ver um menino se desgastando daquela forma ao mormaço carregando tão debilmente a bandeja calejada pela maresia. ainda: uma criança tão nova. e desprotegida como qualquer criança. especialmente: como as novas.

fato é que o moleque sem brinquedo e de passos doídos tirou-me do sério. brotou em mim um estarrecimento que não se pode apaziguar. há dias tenho pensado no menininho que sequer protegido por boné consegue disfarçar a secura que lhe toma a face. Cheguei a planejar uma vida feliz pra ele. não trancando-o em um parque de diversões até que a idade lhe indique a saída. desejei-o, antes, uma vidinha com pai empregado, mãe atenciosa, feijão bem encorpado e bife de fígado que é pra crescer. que o pequeno nativo de um lugarzinho tão lindo tivesse que sentir ardor de areia quente em seus pés somente nos fins-de-semana e enquanto corre solto na areia. o menininho se encontra livre pra ousar em seus passos: já não há bandeja pra ser equilibrada. e todos se reúnem pra armar o guarda-sol e sentir a brisa do mar.

pois eles chamam de utopia. não se trata de uma, elas já não me iludem. mas a despeito de quimeras não me tomarem, eu continuo vendo o que faz brotar no estômago dor e pesar, pena e remorso. aquelas indignações que já não se pode reverter.

e se aquele montante idealista de plena igualdade, justiça e fraternidade já não me convence, continuo a criar forças por lutar por uma vida ao menos decente pressa gente que é tão sofrida. [porque não existe nenhum éden na superfície que habitamos. mas devia é ser proibido que qualquer criança sequer vislumbrasse, ainda que de longe, o lugar onde se dá inferno.]


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