Aug 21, 2008

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Sobre as idades cronológicas, tento me manter passiva, ignorar esse tempo. Não acho que tempo seja linear, que o que já foi está perdido e que só temos um futuro, que nem em branco deve estar. Eu já tenho meus cinqüenta anos mentais posando num corpo de vinte bem mal conservado. Eu ainda tenho sete anos, e fujo da vida porque ela me intimida com cara feia, esbravejando suas verdades e suas mentiras. Eu não sei qual a minha idade cronológica. O tempo poderia ser medido por outras formas que não os segundos, as horas e esse cronômetro irrefreável, enfim. O tempo poderia ser medido nas estações, ou melhor, nas flores e plantas que desabrocham em certos meses e certos períodos. Imaginem, imaginem, se façam imaginar, botem essa caixa mágica em cima de seus pescoços para funcionar, dêem-lhe corda! O tempo das acácias, o tempo das bromélias, o tempo dos lírios, o tempo das azaléias, o tempo das orquídeas, o tempo daquela florzinha tímida do campo que se esconde nas plantações . O tempo do que é natural. Que não é tempo.

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Eu sou hippie por imaginar coisas assim? Ou sou só maluca? Acho que sou boba e só. Mas minha tolice é uma vitória, é a demonstração de que nem o tempo, essa noção arraigada dele, essa noção enganosa, pode me atingir.

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Quando meus pés me faltam, minhas passadas estão cansadas, vou de ônibus urbano. Sou pedestre. Pé por pé caminho o mundo. Hoje houve uma mudança de rota. Ele, que sempre segue seu percurso, seu mesmo caminho inalterável, o ônibus sem ousadia. Mas o tráfego estava impedido (alguém morreu na contramão?) e dessa vez, um novo trajeto. Vi novas ruas. Como é bom ainda descobrir lugares! E melhor: na vizinhança.

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Foi exatamente dentro desse mesmo instrumento de transporte que tantos odeiam que eu observei jardins e pensei que o tempo das flores poderia ser algo mais que poesia. Poderia ser palavra táctil. Poderia ser uma escolha de minha forma de posicionar-me nesse eixo de espaço que se funde em tempo e noções tão menos precisas que as das plantas e do mundo natural. E segurar bem. Afinal os ônibus são veículos turbulentos.

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Devido à mudança de rota uma senhora praticamente entrou em desespero. Era velha, mas não idosa, pois ainda pagava passagem em coletivos urbanos. Suas feições, porém eram envelhecidas demais. Pele vincada exatamente nos músculos que exprimem tristeza. Suas reclamações com o cobrador se tornavam cada vez mais desagradáveis. A rota nem havia sido grandemente transposta, exatamente. Uma ou outra rua. Alguns quarteirões que não matariam a ninguém. Mas seu desespero fez-me ser tomada por uma agonia, uma vontade chacoalhar a senhora e dize-la que uma caminhada ao sol faria é bem pra suas feições tristonhas.

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Sentada no banco fronteiriço ao desta senhora em fumos esbravejantes de desespero pelos passos que seria obrigada a dar, estava uma outra senhora. Essa, que certamente atingia idade maior, pois possuía assegurado seu transporte gratuito, era, independente de cronologias, muito mais jovial. Não pela falta de rugas, que rugas ela também tinha. Mas eram nos outros músculos, aqueles que contornam os olhos e o sorriso. Rugas de alegria.

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Essa senhorinha, sempre animada com seus cabelos curtinhos e seu batom cor de rosa, tentava consolar a outra. Simpaticamente lhe fez perguntas e descobriu que ambas iam ao mesmo supermercado que oferecia descontos e promoções. Ofereceu-se para acompanhar a primeira. Que aceitou. Ainda contrafeita. Nada a arrancaria de seu universo de sisudez.

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Acho que essas duas velhinhas são exemplos dos dois tempos. O tempo do tempo, o tempo dos homens, da civilização. A primeira, que paga passagem, é que viveu nesse tempo. A segunda senhora, a que se anima diante da possibilidade de uma caminhada ao sol e de consolar uma desconhecida, só pode viver no tempo das flores.


(***)

Sobre as margaridas, disse Clarice:

Margarida: É uma flor alegrezinha. É simples: só tem uma camada de pétalas. Seu centro amarelo é uma brincadeira infantil.

1 comment:

Jana Lauxen said...

Acho muito interessante (e lindo) ver a tua maneira de enxergar temas até já batidos, como beleza e tempo, de uma forma tão singular.

Sabe, quando eu era mais nova, dava um dedo da mão direita para não caminhar.
Hoje adoro, troco qualquer percurso de carro por um, a pé.
E é a pé que agora eu atravesso o mundo.

Sou mais nova agora, do que quando tinha 16 anos.


Adoro teus escritos, moça.
Me inspiram, me deixam mais leve.
Não sei explicar.

Beijo.