Um desentupidor nasal em gotinhas, um pacote de chitos feitos de conservante e milho – mas sem gordura trans! - um filme e um bocado de ansiedade pra assisti-lo. As cafungadas se tornaram constantes, um festival delas, do lado de cá e de lá da tela nas duas horas que foram subseqüentes. O meu caso era um resfriado, com corisas, mucos e nojeiras sendo expelidas das narinas pra demonstrar a batalha corpórea entre mocinhos anticorpos e vilões antígenos. Coisa à toa. O caso do João era mais sério. Ele cafungava a branca – e você sabe o que eu quero dizer com a cor, eu tenho certeza - com ardor, por todo o tempo. O nome dele não é Johnny, é João. Comprei a idéia.
Há mais de um ano tenho me servido quase que exclusivamente do cinema nacional. Não que haja uma razão ou que seja um ataque xenófobo meu. É assim: eu vou pra locadora, dou uma olhada nos lançamentos, passeio em todas as prateleiras, tentando até passar longe da plaquinha onde diz “Brasil”. Mas é só me distrair que acabo caindo no lugar de sempre, embaixo das cores verde e amarela. Ando me servindo do audiovisual daqui e sendo muito bem servida, inclusive. Há um ano o consumo e digo que ele anda quase tão viciante quanto o as lagartixas finas e brancas do meu amigo João.
Meu Nome Não é Johnny é mais um exemplo das suculentas demonstrações da terra de cá que andam sendo servidas nas bandejas da prataria. Selton Mello dispensa comentários. A ascendência de sua carreira é a repercussão inevitável do trabalho que há anos realiza com maestria. O protagonista de Lavoura Arcaica e o Cheiro do Ralo fecha um ciclo dramatizando João Guilherme Estrella. Não sou de pagar pau pra ninguém, mas pro Selton – perceba a intimidade – eu pago. A história do filme, do pueril e desastrado traficante e afoitíssimo consumidor cocaína João é tão surreal e incabível que só poderia ter vindo mesmo é da realidade do mundo de verdade.
O ritmo frenético do filme pode ser comparado ao ritmo causado pelos alcalóides da cocadaboa. A intensidade ilusória com que as coisas se dão e a perda gradativa do controle é sentido pelo expectador, que, distraído, é convidado a descer a escada até o fundo que João Estrela, mais um dos personagens da incrível tragédia da vida, desceu. Um menino da classe média carioca, abonado, boa praça, convidativo e provocante.
O foco dos consumidores e da venda da droga não está nos morros e nas favelas, como usualmente. Está inserido na classe média e alta, na juventude, na velhice, nos mais diversos, comuns e aparentemente inocentes segmentos. João não necessita escalar ladeiras, encarar favelas, conhecer as armas e os algozes do tráfico. João, um “menino do asfalto”, continua no asfalto, do asfalto não sai. É de lá que, vagarosamente, ele se torna o maior fornecedor de coca da cidade do Rio de Janeiro. Um tráfico inócuo, que quase nem parece crime: é de dentro dos condomínios que saem os negócios. Ou então, pasme, em uma peixaria, dentro dos peixes. E os compradores, praticamente de todos os cantos, meios, formas, modus vivendi e operandi, profissões, cores, posturas, bolsos. A raiz de um consumo clandestino que está no seio de toda a sociedade, embora quase nem se aperceba, ou prefira-se nem se aperceber.
E João lá, ganhando dinheiro em quantidades estonteantes e mais parecendo um tamanduá bandeira. É caricata na sua inconseqüência. Passeia pelas ruas e lojas com mais de um quilo de cocaína dentro de uma sacola de feira. Gastando as significativas fortunas que ganha. Quando um dos traficantes com quem faz negócio lhe diz que vai parar com seus atos de ilegalidade, pois atingiu sua meta de acumular um milhão, João diz que sua meta é “torrar um milhão”. A trilha sonora atende à pulsação crescente, remete ao rock nacional da época. O espírito aventureiro é freqüente até que qual João, somos atirados na Europa. Em Veneza, gôndola. Romanticamente, puerilmente, ainda inocentemente. As cenas são deslumbrantes. Também nos deslumbramos. Qual João.
Mais frenetismos. Os anos são os oitenta e noventa, com as típicas efervescências. É quando somos reposicionados bruscamente de novo, qual João. As favelas e o sistema criminal brasileiro vêm à tona nas cenas da prisão de João. A projeção do trabalho marginal do jovem João foi tanta que ele nem se deu conta. Quando a polícia federal entrou em seu encalço, não foi difícil encontrar meios pra detê-lo. João foi pego. A bofetada na cara de João vêm do sistema carcerário típico brasileiro. Pra alguém que nunca entrou em uma favela encara-la condicionada em uma cela na forma de vinte ou trinta homens, fora as outras centenas corredor adiante – João, classe alta, não tinha curso superior – deve ter sido chocante.
Certo. Contei praticamente toda a história. Isso não se faz resenhando um filme. Mas antes de uma tentativa de resenha, isso é uma tentativa de, exatamente, narrar essa história, a história de João. João Guilherme Estrella É uma história e tanto, daquelas que a gente quer ter o prazer de contar, especialmente porque, por mais absurdo que seja seu enredo, ela é uma história real, suas delineações são tramadas com tanta espetacularidade que o palco não poderia ser outro que não a vida, conforme seus ditames. A vida como ela é. João, antes de um consumidor extasiado, um “junky”, mas ainda um negociador nato de um perigoso produto ilegal, era um bom-vivant. Um rapaz simpático, divertido, conquistador. Empreendedorismo e aventura que cativam. Além de tudo, podemos enxergar o comércio de substâncias ilícitas como era há alguns quinze anos, quando as projeções não eram epidêmicas e realidades como as filmadas em “Tropa de Elite” eram impensáveis. Na época onde ainda havia romantismo em relação aos psicotrópicos. Um romantismo esquisito, mas tão quixotesco quanto qualquer romantismo.
Sorte ou não, o final de João também se desenhou com espetacularidade. Ao invés de entende-lo conforme um traficante, a juíza que tratou do caso de João entendeu-o como um viciado. João passa pela vida incólume, talvez a realidade também lhe tenha simpatia, afeição aos seus trejeitos. A pena de Estrella se reduziu a dois anos de internação em clínica psiquiátrica. E conforme o tom espetaculoso, um gran-finale se segue: com João Estrella, o sistema punitivo das leis nacionais funcionam. O que talvez seja a maior ironia e o maior espetáculo desta trama trançada pelas razões desconhecidas da vida. Da vida real. Onde o grande protagonista não se chama Johnny, se chama João.
Meu nome não é Johnny
Uma Produção: Atitude Produções
Produção: Mariza Leão
Direção: Mauro Lima
Roteiro: Mauro Lima e Mariza Leão
(inspirado no livro homônimo de Guilherme Fiúza) .
2 comments:
Nossa.
Me arrepiou aqui.
Cada palavrinha.
E concordo com todas.
Ainda não assisti, mas Meu nome... é um dos primeiros da minha lista para próximas locações.
Vamos conhecer a vida de João.
Beijoca.
:)
Devia ter no título: Contém spoilers. Mas tudo bem, eu gostei. Não vou deixar de ver o filme por isso. eheheheh...
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