Jul 12, 2008







Dizem que os grandes assassinos e carrascos, os serial killers e os ditadores, criminosos e pérfidos hediondos, enfim, após sua morte, são condenados a reencarnar no corpo do morador de um condomínio. Quanto mais imponentes e majestosamente macabros fossem os atentados e o pecados cometidos pelo réu, a mais blocos indubitavelmente cúbicos e compridos de concreto – verdadeiros pombais onde se encarceram humanos – ele estaria condenado.


Eu moro no Condomínio Brida. Dois blocos. A e B. Se a premissa popular for verdadeira, meu crime em vidas idas foi dos relativamente pequenos, mas dos chocantes e estarrecedores, imagino. Esse é meu “residencial”: pequeno e incomodativo. São dois blocos, cinco andares de seis apartamentos cada, mais as duas cobertura, quatro garagens, três porteiros, um síndico cínico e uma faxineira que parece ser a única civilizada e sociável por aqui. E eu me pergunto como um exemplar tão pequeno – comparado às projeções que se atingem – da vida condominial possa ser tão infernal. Não tipo o inferno de Dante, que possui eufemismos como rimas e literatura. O inferno real, da vida como ela é. Antes Nelson Rodrigues e uma pitada do fatídico trágico em que consiste conviver.

Hoje pela manhã recebi a visita do síndico cínico aliterado e assonante, Agenor. Absolutamente todos os dias destes seis meses de verdadeiro matrimônio – com todo o retrógado e insuportável das figuras associadas ao casamento - condominial eu o vi trajado, senão com as mesmas roupas, com modelos semelhantes ao ponto de eu não notar diferenciação nas infelizes vezes em que temos de nos cruzar nas “áreas de convivência” do Residencial Brida. Sempre é uma daquelas calças de modelo de alfaiataria em tons como béige e cru e uma camiseta pólo cor azul bebê. Nos dias mais frios, um casaco de kashmir. Invariável, impoluto, com um olhar de sadismo sarcástico cumprimentando-me, parecendo antever minha inadequação a essa vida coletiva em quadrados concretados e com paredes azulejadas e confirmá-la como que dizendo “sim, você não deveria estar aqui”.

E hoje ele aqui, na minha porta, frente ao meu pequeno polígono de lar, meu pequeno santuário, tocando furiosamente a campainha. Logo pensei no condomínio que deveria estar atrasado. Eu, ainda de pijamas, tive de pedir uns segundos para que pudesse me vestir. Vi através do olho mágico a sua impaciência. O porteiro o acompanhava. Talvez fosse mais sério. Não sei porque temo. Não faço grandes barulhos, não dou festas, não acho que a minha vidinha pacata aqui dentro incomode alguém ali fora, ou do lado de lá do corredor. Mas convivência sempre é difícil. Eu não deveria temer.

É engraçado como quando estamos apressados, ou nervosos, ou ansiosos, ou a soma destes, conforme eu me encontrava, não conseguimos executar absolutamente nada com vestígio de precisão ou perícia. Vestir uma saia e uma blusa se tornou aflição, os segundos que corriam e aqueles dois ali fora.

Quando coloquei minha cara feia, descabelada e sonolenta, mas tentando aparentar uma espécie de retidão e dignidade suficiente para falar com o xerife nos ares do oeste do condomínio, o maioral dentro do estatuto de convivência, tive de conter minha filha canina Leda, para que ela não se botasse a brincar simpaticamente com a sumidade. Pobre Leda, não sabe quão respeito devemos às essas pequenas autoridades ludibriadas com o alcance do seu poder. Nem um quarteirão, mas quantas vidas?

Era exatamente dela que reclamavam, da filhote. Repito: Pobre Leda. Ela tem um quilo e meio, dois meses e meio. É tão infantil que ainda não sabe latir. Passa os dias dormindo e me acompanhando. Mas mesmo assim, o coletivo anônimo com quem convivo é intolerante a ela. Decerto ouviram algum de seus ganidos, porque ela ainda é tão infantil que não suporta a solidão, e imagino que chore um pouco quando estou fora. Mas desde que a adotei estou de férias, então, em termos práticos, eu não fico fora de casa. De que eles reclamam?

A outra consideração era sobre o cheiro de substâncias ilícitas que andam sendo emanados na vizinhança. Eu sinto às vezes, no segundo andar, no corredor, mas nunca me interessei pela vida alheia e nem achei que os odores do corredor deveria incomodar-me. Às vezes tem cheiro de comida sendo cozinhada, às vezes tem cheiro de esgoto se despejando, às vezes tem cheiro quase nauseante de cebola sendo frita, às vezes tem cheiro de incenso e às vezes tem cheiro, exatamente, de ilícitos sendo consumidos. Aos outros incomoda. Agenor disse que estava passando de apartamento em apartamento para avisar aos moradores da nova resolução do condomínio: que se novas reclamações surgissem, a polícia poderia ser chamada e entraria dentro dos apartamentos para verificar a “situação”.

Era o que me faltava. Agora, corro o risco de ser invadida pelo defasado, incipiente e claramente corrompido órgão de segurança pública na retidão e placidez de meu lar. Isso, pelo bem do condomínio arrogante que perde parte do seu dia preocupando-se de onde é que vem a marofa. Isso é tão desnecessário e infeliz quanto os indivíduos que passam boa parte de suas vidas discutindo sobre em que buraco é que o pênis ou coisa que o valha deva ser enfiado. Eu só não desejo ser incomodada, ser contatada, ser visitada. É demais em um condomínio?

Conversas vão e vem, o porteiro tenta se tornar mais simpático e me conta das razões da medida: um traficante que habitava as dependências bridienses. [e após uns dias, quando resolvo dar uma olhada naquela papelada toda que o condomínio entrega, atas, reuniões, estatutos, tudo que eu não tive saco de ler anteriormente, eu descobri que nem foi aqui que aconteceu o sucedido do trafica, na verdade, foi tão longe de cá, que foi no continente, não na ilha.].

Continuo achando uma palhaçada. Mas eles são a autoridade, eu os respeito. Rio de suas piadinhas. Simpatia, simpatia. Intimamente pensava, com ironia que agora, quando eu quiser fumar, cigarros de tabaco legalizado, taxado, e quase tão criminalizado quanto os outros cigarrinhos do meu vizinho, vou ter que sair do condomínio. Ou esconder os maços quando sair de casa, pois meu apartamento pode ser “estourado pelos hômi” e sabe-se lá qual a penalidade pra ter cigarro em casa hoje em dia.

A consideração final, incontestável, irrevogável do cínico síndico: “Leve a cachorrinha aonde você for. O condomínio não quer ser incomodado.”

O condomínio, essa entidade...

4 comments:

Jana Lauxen said...
This comment has been removed by the author.
Jana Lauxen said...

Nossa.
Eu poderia jurar que já faziam mais de vinte anos que a ditadura tinha acabado.

Que coisa não?

Assim como Cazuza, também peço piedade prá essa gente careta e covarde.

Grande texto Nate.
:)

Anonymous said...

Nate!
Adoro seus textos pela magia que faz com as palavras, transformando em arte fatos cotidianos...

Eu não moro no condomínio Brida, moro no condomínio Gabrielle, três blocos, um síndico e vizinhos com ouvidos sensíveis.

Aqui as regras são parecidas, no tal estatuto do condomínio, o qual não li, contaram-me que está escrito que crianças não podem andar de bicicleta, correr ou jogar bola nas áreas de uso comum... O melhor era proibir os condominos de ter filhos...

E eu, que também não promovo festas e fico pouquissimo tempo em casa, já recebi duas advertências pelo excesso de barulho. Meu crime: chegar depois das 10h da noite (toque de recolher do silêncio) e subir dois andares de escada de salto alto. Atrapalho o descanço de meus vizinhos.

Qualquer dia vão sugerir que eu deixe uma pantufa na entrada do prédio para trocar antes de subir...

É, viver em um condomínio é uma arte!

Mateus said...

Esse texto realmente foi muito bom, fez-me viver a vida do condomínio Brida.

"condomínio, essa entidade"

Ri muito!