chove oblíquamente nas roupas que eu há pouco me esmerei a torcer e estender.
chove, chove, as fazendas cheirosas de limpas em contato com a água do céu, as fazendas que não secarão. eu queria uma chuva que além de molhar os panos que meus braços acabaram de imacular, lavasse minha alma. lavasse dos desesperos, lavasse das metidações, lavasse de todo esse vazio triste e mórbido que se põe no recinto. agora. e chove lá fora.
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não é semente, as coisas não funcionam sempre assim. você planta, rega, colhe. assim é simples demais.
quantos brotos a terra úmida demais ou seca demais engole? quantas boas intenções de vida vegetativa ou inflorescente... queria que tudo funcionasse como terra boa e clima ameno. assim, você atira o germe no chão, conversa com ele, lhe dá atenção e ele cresce, cresce, ocupando toda a vastidão, fura o céu pra poder se expandir.
mas não, não.
a metáfora da semente não funciona. há sementes podres que parecem boas, há chão, bicho, inseto, praga, doença, ferrugem. e nem as conversas, e nem o carinho, e nem a água clara e brilhante que sai do regador são eficientes contra tanto mundo a atacar a plantinha.
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certas feitas, ‘inda infante, achava que se eu imaginasse uma coisa com muita força, por muito tempo, segurando bem e firme a respiração, assim, de estalido, de "puft-póim", só uma onomatopéia, e a coisa se tornaria real.
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chove na roupa molhada. não tento mentalizar forte que pare a chuva, nem implorar que sequem as gotas. deixa a chuva que desfaz meus esforços em lavar as roupas. deixa chover gotas de cristal pra depois sair todo esse monte de cinza feio do céu.
volta o azul. não volta. ainda. a música é uma abstração que salva a alma. as gotas são música, ora ou outra ave louca. eu poderia escrever cartas e não me apegar tanto às pessoas. falar-lhes de longe apenas. mas preciso vê-las, sentí-las intimamente, rosto-rosto, sorriso - sorriso.
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ahn, as coisas, as coisas, poderiam ser mais certas as coisas. poderiam ser mais exatas, seguir qualquer curso, não precisa ser exatamente o que eu planejo e espero, mas um curso indeterminado que ao menos parecesse curso. não coisas como objeto, não coisas que se pega. sabe-se: "as coisas", essas meio peculiares da existência, as vicissitudes da vida. ou ainda, para quem prefere generalizá-las em uma única e massiva: a coisa. "como anda a coisa?" ahn, mas a minha não anda. ela tropeça, ela cai, ela corre às vezes e de outras prefere parar e estagnar. a coisa num dia chuvoso não é bem coisa. é só o resto da coisa, o dia cinza de nada.
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queria acalento, não tenho. nem voz amiga. quando se quer essas coisas necessária a um pouco de dignidade de espírito - e não se tem - é possível sentir-se o mais puro nada. um vácuo que aguarda um cafuné que seja. não dá pra pedi-lo às portas ou aos objetos, eles não respondem.
peço afagos à chuva, gelados, incidentes, gotinhas de flecha. não quero coisas, nem ter de pensar muito, quero o meu vazio de nenhuma sensação, o meu vazio dos não-insights, o meu vazio do que não houve.
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