Oct 28, 2008

Sobre como nunca desistiremos de falar de amor.


Por que o amor não é o suficiente?



Porque as pessoas não estão prontas, maduras o bastante para o sublime, embora seu amor esteja em flor, ou em fruto carnudo e doce, esteja em forma e pleno. Não é sempre que o coração está pronto, que o corpo está pronto, mas, especialmente, que a mente está pronta para amar. Porque amar é sempre demais e é sempre tudo. Mas agrega tantos extremos, tantas facetas e tantos sentimentos, que se torna difícil e dolorido. Mesmo – já sabemos décor e salteado - o ódio, é uma rasgada e ardente versão do amor. A coroa da cara, mas a mesma moeda. O que não é amor, é só apatia e indiferença. O que não é amor é nada.



O amor não é o suficiente porque ele não é humano, enquanto nós somos e por demais. E fracos por isso. E tolos por isso. E facilmente corruptíveis por isso. E certamente ludibriáveis por isso. E tempestivos por isso. E herméticos por isso. Humanos, sim, demasiado humanos. O amor não é gente, não é cor, nem bicho, nem concreto, nem abstrato. O amor é demais para os humanos.


O amor se basta, se sustenta. É como a energia que não se perde. Que se propaga. Que se transforma. Isso: amor-energia. Amor é como luz. Calor e luz. Nós estamos no escuro. Agarramo-nos à luz que, em alguns feixes certeiros, entra em nossa caverna. Mas não podemos pegar a luz, tateá-la, guarda-la conosco. Ela segue seu destino por si em reflexão, refração, difusão. O que podemos é apenas sentir seu reflexo. Tentarmos não sermos opacos. A melhor metáfora pra amor: é como luz. Auto-suficiente por si. Mas não, não é o suficiente. Não pra gente.


Como eles, que se amavam, mas não se entendiam. Um casal. Enquanto seu amor crescia monumentalmente, seus egos, seus anseios e sua carga dramaticamente pessoal se distanciavam. Não se entendiam. Quando ele queria dizer alguma coisa, ela compreendia absolutamente o contrário. E vice-versa. Não era por birra, ou má-vontade. Por mais que falassem o mesmo idioma, a mesma língua – e até o vocabulário se parecia – era como se estivessem falando um em aramaico e o outro em latim. Eram humanos. Ele e ela, com tanto amor e tanta semelhança, não conseguiam se entender. Queriam dizer: “- Eu te amo!”, “- Estou com medo disso tudo.”, “- Não podemos nos perder!”. Mas o que saía de seus lábios era, na verdade: “Lá vem você com sua grosseria!”, “- Como você pode ser tão infantil?”, “- Viu, vai dar piti de novo!”


E enquanto isso, a luz entrava pela janela e não encontrava onde irradiar. A sala era opaca. Ficaram os dois no escuro. Cada um tateando a mobília, caminhando rente a parede, clamando por uma chaminha fraca que desfizesse tal breu. Uma vela, talvez. Um amanhecer que não veio. Ficaram na escuridão. E nunca mais sentiram a mão de um na do outro, como eles gostavam de fazer quando o dia ainda era claro.

Oct 19, 2008

sobre um verão.

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Era verão e eu ainda tinha uns quatorze anos. Havia muitos outros verões que não íamos à praia, mas naquele ano sobrou um dinheirinho e minha família decidiu que também poderia torrar suas carnes esbranquiçadas no litoral. E o local escolhido para aqueles esperados quinze dias de paz praiana e paradisíaca, diversão, farofada e descanso foi, justamente, a ilha em que agora moro.A diferença é que nem mesmo na costa é verão o ano inteiro.

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Eu me lembro ainda de quando chegamos de viagem. De como era difícil esticar as pernas que ficaram dez horas restritas ao pequeno espaço não ocupado pela bagagem que hiperlotava o carro. Mas de como fui ágil pra poder correr pro mar, poder sentir suas ondas, seu salgado e seu gelado. Aquela vida estranha que nos fagocita entre onda e maré, quando nos tornamos parte de algo que não tem fim nem diante dos olhos. Eu vinha do interior, não perderia um segundo. Só o tempo de vestir o biquíni.

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Mas eu lembro também que toda a alegria ansiosa que eu trouxe comigo na viagem ao longo dos primeiros dias foi se esvaindo até se tornar uma espécie de angústia. Eu tinha quatorze anos e morava no interior, ainda estava, de certa forma, incólume a todos esses contrastes e atordoamentos da vida. E de repente, vi-me diante dela: a ostentação. No norte da ilha, os turistas gastam. Os camarões no bafo e as fortunas no barzinho beira-mar. Todo mundo bem espichado em cadeira confortável comprando quinquilharias compulsivamente.


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Eu enxergava mais, com mais nitidez e vísceras, em contrapartida, aquele outro lado tímido e pobre que também torrava no sol, mas não por vontade. Talvez eles também quisessem água fresca, eu via isso, sentia-lhes a sede do corpo e da garganta. Eles sobreviviam, vendendo as quinquilharias. Crianças e senhoras, homens de todas as idades caminhando exaustivamente, ganhando trocados com churros, ou picolés, ou queijos assados, ou brinquinhos e panos de prato.

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No final das férias latejava em mim uma dor que eu não entendia, mas que não evitava deixar transparecer num olhar meio cabisbaixo. Foi quando meu pai teve a idéia de me levar para um passeio no “centrinho”, à notinha, pra ver se me animava. No passeio, entramos em algumas lojas, eu e minha irmã. Numa dessas, uma saia toda bonita me conquistou, com aquele poder de vaidade que as roupas têm sobre as mulheres quando lhes caem bem. Mas a saia custava uma fortuna: cem reais! (Sim, eu acho cem reais por uma peça de vestuário a mais absoluta fortuna, uma fortuna impagável, inclusive. Eu, ao menos, não pago.). O meu pai, tão cheio de boas intenções e ternura comigo, porém, aceitou pagar o altíssimo preço só pra ver se me arrancava uns sorrisos. Gostei tanto da saia que não consegui recusar.

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Saí da loja momentaneamente feliz pela aquisição. Já era tarde, a noite e o movimento se acabavam no silêncio que sempre resta. Fomos encontrar minha mãe, que estava em uma espécie de camelódromo alguns quarteirões adiante. Encontramos-na entretida em um pequeno estande, pobrinho, que vendia uns calções de banho feios, uns chinelos e umas camisetas com palmeiras e a inevitável estampa: “Florianópolis”. Minha mãe, distraída com os calções, nem procurou pela vendedora da barraquinha. Quando eu me debrucei sobre o balcão improvisado, encontrei: duas crianças, que tinham no máximo dez anos, sentadinhos, irmãos, a menina e o menino, tão comportadinhos que meu deu pena. Perguntei-lhes pela mãe, ao que menina, tão educada, me disse que estava trabalhando na rua, vendendo as camisetas. “Então são vocês que cuidam do negócio, aqui?”. “Sim, moça.”.

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Foi como se algum pugilista desferisse sucessivas esbofeteadas na minha cara, então sardenta e tostada de sol. Me senti o último dos seres, encarcerada em solidão e culpa. Enquanto eu me divertia e aproveitava o verão, lá estavam aquelas duas crianças às onze da noite em um pavilhão de camelôs se ocupando em vender camisetas. E tinha aquela maldita saia, na sacola. Digo maldita, porque foi assim que eu a tive naquele instante. O embrulho se tornou cada vez mais pesado, e eu tinha vontade de deixar aquela extravagância pelo caminho. Me esquecer que eu, tão velha com aqueles quatorze anos, ainda ganhava presentes enquanto aqueles dois pequenos se viravam com tanta maturidade e senso de realidade. Tão novinhos e já estavam a par das descontinuidades do mundo.

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Caí num choro convulsivo. Saí correndo de dentro do barracão comercial e corri pra um banco onde pudesse chorar sem ser vista. Minha família, depois de muito me procurar, ao me encontrar lá fora vermelha e deformada de chorar, não entendeu nada. Ficaram atônitos. Eu não lhes expliquei. Era o mundo que eu começava a ver. Eu, menina de interior, que só sabia da vida o que queria saber e o que os livros diziam. Não que isso fosse lá muito pouco. Mas na prática é mais doído, na prática tem sangue. E o mundo, assim, bruto e abrupto me jogando nas fuças as coisas que eu não sabia e que deveria saber.

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Acho que essa foi a primeira dor pela vida que eu tive. Não deve ter sido a primeira, realmente, mas pelo menos foi a primeira sensação que eu pude tornar inteligível. Essa dor que pesa no peito, no ventre e nos ombros e que me acompanha desde então. De forma crônica. A dor do mundo. Uma dor dessas, de menina do interior.

Oct 8, 2008

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sobre medidas e tamanhos.



além do nariz e das orelhas que nunca param de crescer, e do cabelo que rareia, há uma coisa boa nesse tal passar do tempo que impiedosamente nos envelhece. há uma coisa, digamos que intrínseca apenas, pra não cairmos em metafísicas, que também cresce. ainda bem. é que crescemos. em projeções e dimensões que não se conhece a fundo ainda. que nunca poderão ser conhecidas "a fundo". mas que existem.

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[acho que a amplidão com que o mundo se revela diante dos nossos olhos quando entendemos que seu tamanho não tem fim é uma boa metáfora para a tal “coisa”.]


quando essa "coisinha de dentro” descobre que não importa o quanto ela acha que sabe das coisas sempre haverá infinitas outras para serem descobertas e apreciadas, é que uma inevitável mudança vem.

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acho que estou no ponto, no tamanho exato pra começar a abandonar certezas. certezas calcadas em rocha e contraditas jamais não me interessam. nem um pouco, senhor.

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tem vento. tem rajadas, rojões, tufões. tem brisa. mas se leves montantes de ar acariciam a pele, a maresia a castiga. e no vendaval são justamente elas, ironia, as certezas, as primeiras a caírem.

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se você está "certo de que", eu já não me interesso, senhor. gosto do erro, dos que erram, vagam rumo ao esmo. que sabem que o mundo é mundo, e é tão, tão imenso, que se agarrar somente a um galho, um lugar, uma casa, uma opinião, um poema, uma música, a só, exclusivamente algo é perdê-lo. e, principalmente, é perder o restante.

Oct 1, 2008

café, açúcar e formiguinha.

As formiguinhas, pequeninhas, que tomam conta do açúcar aqui em casa. São uns monstrinhos destrutivos. Nem a lata de guloseimas foi poupada. E nem o açucareiro. Nem mesmo os potes, lacrados, tampados escaparam. E os doces em geral. Tomaram conta das prateleiras, dos mantimentos, da ração da filhote de “raposa” paulista; minha filha canina Leda. Elas tomaram conta da casa, de tudo. Formiguinhas, pequenas, organizadas, fazem estrago e sabem que mandam. São muitas. Uma revolução desses microscópicos invertebrados seria o caos da humanidade [caso eles soubessem que podem unir-se, e em número, sim, derrocar nossa altiva raça]. As minhas formiguinhas já são bastante espertas, em questões revolucionárias: elas assaltam no ponto mais frágil de um lar, especialmente nesta época de crise dos alimentos: a despensa.

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Mas meu café, bem, precisa ser adoçado. E mesmo que eu trave um embate com meu estômago, que se contrai ante a visão de um ser a sapatear sobre sua “comida” – e que esse ser nem é tão ser, assim, afinal é uma formiga - um ser que vive “imunda”, pura e naturalmente, que excreta, que se alimenta, que é sujo, pois é bruto, mesmo assim, só sei tomar café adoçado com sacarose. Ou nada feito. Engoli seco. Não sei se tomo café com uma coitadinha amiga formiguinha. Ainda tenho dó das pobrezinhas, pode? Chamo-as de amigas! De qualquer forma, a necessidade de uma xícara fumegante e reconfortante de café pra animar minha madrugada e me encorajar a encarar as horas silenciosas falou mais alto. E cá tomo eu, golinhos do cemitério fervente e cafeinado de amigas/inimigas formiguinhas. Torço para que não haja nenhuma delas na poção, só seus resquícios. Umas patinhas de formiga, anteninhas de formiga, talvez.

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Deve ser o calor. Sim, no calor parece que elas se reproduzem vegetativamente e simplesmente brotam dos cantos. Mas é verdade também que minha lastimosa morosidade e falta de aptidão diante dos cuidados que requer um lar também devem contribuir. As bichinhas gostam de açúcar e no meio da sujeira da minha vida, açúcar e melado pelas bordas é que não deve faltar. Sou das piegas, das mujeres latinas, dramáticas. Podia ser pior, podiam ser baratas, baratinhas. Aqui não há baratinhas. E pensando na possibilidade de, por exemplo, ter de conviver com elas, acho que as formiguinhas talvez não sejam tão más. Ainda que sejam sujas. Nada mais sujo que esse mundo e esses bichos que nunca passaram por uma boa faxina, um banho antiséptico.

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Fazer amizade com elas, as formigas. Eu disse como elas são? São brancas. Digo, não brancas, exatamente, mas clarinhas, num tom quase incolor de areia. Acho que elas são as formigas de menores projeções que eu já vi. Às vezes, pra estar certa de que elas estão lá, passeando, simplesmente caminhando em fila indiana, porque a fila precisa andar, eu tenho de chegar bem perto, forçar minhas pálpebras. Mas se eu fizer isso, elas estarão lá. Muitas. Incontáveis. Penso no que eu não vejo.

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É o jeito, ser amiga delas. E então, será difícil guardar os nomes, pois elas são muitas, são infinitas. Mas são formigas, e prescindem dessas invenções antropológicas, como a língua e a denominação. Sem nome, as minhas amiguinhas que de tantas, são uma só: amiguinha formiga que me rói pelas beiradas. E nessa amizade interespécie, eu entenderia, que ainda entre os cômodos, e as paredes, quando eu penso estar sozinha, acreditando em minha solidão, mesmo que a sensação de só me encarcere e me traga felicidade, ela é apenas uma ilusão. Há milhões, bilhões, infinitas e incontáveis amigas formigas na casa. E outras dessas vidinhas pequenas – não vidas menores – me acompanhando. No carpete, na pia, na privada, na poeira, no açucareiro, embaixo de minhas unhas, se alimentando de minhas células mortas. E, meu deus, até dentro de mim! Não, não estou só. Se há vida nessa sala, que não só a minha, é que não estou só. Nathalia e as formigas. Vou é fazer amizade com essas vidinhas. Mas deixar bem claro que o pote de açúcar é meu!