Jul 31, 2008

O nome dele não é Johnny, é João. Comprei a idéia.

Um desentupidor nasal em gotinhas, um pacote de chitos feitos de conservante e milho – mas sem gordura trans! - um filme e um bocado de ansiedade pra assisti-lo. As cafungadas se tornaram constantes, um festival delas, do lado de cá e de lá da tela nas duas horas que foram subseqüentes. O meu caso era um resfriado, com corisas, mucos e nojeiras sendo expelidas das narinas pra demonstrar a batalha corpórea entre mocinhos anticorpos e vilões antígenos. Coisa à toa. O caso do João era mais sério. Ele cafungava a branca – e você sabe o que eu quero dizer com a cor, eu tenho certeza - com ardor, por todo o tempo. O nome dele não é Johnny, é João. Comprei a idéia.

Há mais de um ano tenho me servido quase que exclusivamente do cinema nacional. Não que haja uma razão ou que seja um ataque xenófobo meu. É assim: eu vou pra locadora, dou uma olhada nos lançamentos, passeio em todas as prateleiras, tentando até passar longe da plaquinha onde diz “Brasil”. Mas é só me distrair que acabo caindo no lugar de sempre, embaixo das cores verde e amarela. Ando me servindo do audiovisual daqui e sendo muito bem servida, inclusive. Há um ano o consumo e digo que ele anda quase tão viciante quanto o as lagartixas finas e brancas do meu amigo João.

Meu Nome Não é Johnny é mais um exemplo das suculentas demonstrações da terra de cá que andam sendo servidas nas bandejas da prataria. Selton Mello dispensa comentários. A ascendência de sua carreira é a repercussão inevitável do trabalho que há anos realiza com maestria. O protagonista de Lavoura Arcaica e o Cheiro do Ralo fecha um ciclo dramatizando João Guilherme Estrella. Não sou de pagar pau pra ninguém, mas pro Selton – perceba a intimidade – eu pago. A história do filme, do pueril e desastrado traficante e afoitíssimo consumidor cocaína João é tão surreal e incabível que só poderia ter vindo mesmo é da realidade do mundo de verdade.

O ritmo frenético do filme pode ser comparado ao ritmo causado pelos alcalóides da cocadaboa. A intensidade ilusória com que as coisas se dão e a perda gradativa do controle é sentido pelo expectador, que, distraído, é convidado a descer a escada até o fundo que João Estrela, mais um dos personagens da incrível tragédia da vida, desceu. Um menino da classe média carioca, abonado, boa praça, convidativo e provocante.

O foco dos consumidores e da venda da droga não está nos morros e nas favelas, como usualmente. Está inserido na classe média e alta, na juventude, na velhice, nos mais diversos, comuns e aparentemente inocentes segmentos. João não necessita escalar ladeiras, encarar favelas, conhecer as armas e os algozes do tráfico. João, um “menino do asfalto”, continua no asfalto, do asfalto não sai. É de lá que, vagarosamente, ele se torna o maior fornecedor de coca da cidade do Rio de Janeiro. Um tráfico inócuo, que quase nem parece crime: é de dentro dos condomínios que saem os negócios. Ou então, pasme, em uma peixaria, dentro dos peixes. E os compradores, praticamente de todos os cantos, meios, formas, modus vivendi e operandi, profissões, cores, posturas, bolsos. A raiz de um consumo clandestino que está no seio de toda a sociedade, embora quase nem se aperceba, ou prefira-se nem se aperceber.

E João lá, ganhando dinheiro em quantidades estonteantes e mais parecendo um tamanduá bandeira. É caricata na sua inconseqüência. Passeia pelas ruas e lojas com mais de um quilo de cocaína dentro de uma sacola de feira. Gastando as significativas fortunas que ganha. Quando um dos traficantes com quem faz negócio lhe diz que vai parar com seus atos de ilegalidade, pois atingiu sua meta de acumular um milhão, João diz que sua meta é “torrar um milhão”. A trilha sonora atende à pulsação crescente, remete ao rock nacional da época. O espírito aventureiro é freqüente até que qual João, somos atirados na Europa. Em Veneza, gôndola. Romanticamente, puerilmente, ainda inocentemente. As cenas são deslumbrantes. Também nos deslumbramos. Qual João.

Mais frenetismos. Os anos são os oitenta e noventa, com as típicas efervescências. É quando somos reposicionados bruscamente de novo, qual João. As favelas e o sistema criminal brasileiro vêm à tona nas cenas da prisão de João. A projeção do trabalho marginal do jovem João foi tanta que ele nem se deu conta. Quando a polícia federal entrou em seu encalço, não foi difícil encontrar meios pra detê-lo. João foi pego. A bofetada na cara de João vêm do sistema carcerário típico brasileiro. Pra alguém que nunca entrou em uma favela encara-la condicionada em uma cela na forma de vinte ou trinta homens, fora as outras centenas corredor adiante – João, classe alta, não tinha curso superior – deve ter sido chocante.

Certo. Contei praticamente toda a história. Isso não se faz resenhando um filme. Mas antes de uma tentativa de resenha, isso é uma tentativa de, exatamente, narrar essa história, a história de João. João Guilherme Estrella É uma história e tanto, daquelas que a gente quer ter o prazer de contar, especialmente porque, por mais absurdo que seja seu enredo, ela é uma história real, suas delineações são tramadas com tanta espetacularidade que o palco não poderia ser outro que não a vida, conforme seus ditames. A vida como ela é. João, antes de um consumidor extasiado, um “junky”, mas ainda um negociador nato de um perigoso produto ilegal, era um bom-vivant. Um rapaz simpático, divertido, conquistador. Empreendedorismo e aventura que cativam. Além de tudo, podemos enxergar o comércio de substâncias ilícitas como era há alguns quinze anos, quando as projeções não eram epidêmicas e realidades como as filmadas em “Tropa de Elite” eram impensáveis. Na época onde ainda havia romantismo em relação aos psicotrópicos. Um romantismo esquisito, mas tão quixotesco quanto qualquer romantismo.

Sorte ou não, o final de João também se desenhou com espetacularidade. Ao invés de entende-lo conforme um traficante, a juíza que tratou do caso de João entendeu-o como um viciado. João passa pela vida incólume, talvez a realidade também lhe tenha simpatia, afeição aos seus trejeitos. A pena de Estrella se reduziu a dois anos de internação em clínica psiquiátrica. E conforme o tom espetaculoso, um gran-finale se segue: com João Estrella, o sistema punitivo das leis nacionais funcionam. O que talvez seja a maior ironia e o maior espetáculo desta trama trançada pelas razões desconhecidas da vida. Da vida real. Onde o grande protagonista não se chama Johnny, se chama João.

Meu nome não é Johnny

Uma Produção: Atitude Produções

Produção: Mariza Leão

Direção: Mauro Lima

Roteiro: Mauro Lima e Mariza Leão

(inspirado no livro homônimo de Guilherme Fiúza) .


Jul 12, 2008







Dizem que os grandes assassinos e carrascos, os serial killers e os ditadores, criminosos e pérfidos hediondos, enfim, após sua morte, são condenados a reencarnar no corpo do morador de um condomínio. Quanto mais imponentes e majestosamente macabros fossem os atentados e o pecados cometidos pelo réu, a mais blocos indubitavelmente cúbicos e compridos de concreto – verdadeiros pombais onde se encarceram humanos – ele estaria condenado.


Eu moro no Condomínio Brida. Dois blocos. A e B. Se a premissa popular for verdadeira, meu crime em vidas idas foi dos relativamente pequenos, mas dos chocantes e estarrecedores, imagino. Esse é meu “residencial”: pequeno e incomodativo. São dois blocos, cinco andares de seis apartamentos cada, mais as duas cobertura, quatro garagens, três porteiros, um síndico cínico e uma faxineira que parece ser a única civilizada e sociável por aqui. E eu me pergunto como um exemplar tão pequeno – comparado às projeções que se atingem – da vida condominial possa ser tão infernal. Não tipo o inferno de Dante, que possui eufemismos como rimas e literatura. O inferno real, da vida como ela é. Antes Nelson Rodrigues e uma pitada do fatídico trágico em que consiste conviver.

Hoje pela manhã recebi a visita do síndico cínico aliterado e assonante, Agenor. Absolutamente todos os dias destes seis meses de verdadeiro matrimônio – com todo o retrógado e insuportável das figuras associadas ao casamento - condominial eu o vi trajado, senão com as mesmas roupas, com modelos semelhantes ao ponto de eu não notar diferenciação nas infelizes vezes em que temos de nos cruzar nas “áreas de convivência” do Residencial Brida. Sempre é uma daquelas calças de modelo de alfaiataria em tons como béige e cru e uma camiseta pólo cor azul bebê. Nos dias mais frios, um casaco de kashmir. Invariável, impoluto, com um olhar de sadismo sarcástico cumprimentando-me, parecendo antever minha inadequação a essa vida coletiva em quadrados concretados e com paredes azulejadas e confirmá-la como que dizendo “sim, você não deveria estar aqui”.

E hoje ele aqui, na minha porta, frente ao meu pequeno polígono de lar, meu pequeno santuário, tocando furiosamente a campainha. Logo pensei no condomínio que deveria estar atrasado. Eu, ainda de pijamas, tive de pedir uns segundos para que pudesse me vestir. Vi através do olho mágico a sua impaciência. O porteiro o acompanhava. Talvez fosse mais sério. Não sei porque temo. Não faço grandes barulhos, não dou festas, não acho que a minha vidinha pacata aqui dentro incomode alguém ali fora, ou do lado de lá do corredor. Mas convivência sempre é difícil. Eu não deveria temer.

É engraçado como quando estamos apressados, ou nervosos, ou ansiosos, ou a soma destes, conforme eu me encontrava, não conseguimos executar absolutamente nada com vestígio de precisão ou perícia. Vestir uma saia e uma blusa se tornou aflição, os segundos que corriam e aqueles dois ali fora.

Quando coloquei minha cara feia, descabelada e sonolenta, mas tentando aparentar uma espécie de retidão e dignidade suficiente para falar com o xerife nos ares do oeste do condomínio, o maioral dentro do estatuto de convivência, tive de conter minha filha canina Leda, para que ela não se botasse a brincar simpaticamente com a sumidade. Pobre Leda, não sabe quão respeito devemos às essas pequenas autoridades ludibriadas com o alcance do seu poder. Nem um quarteirão, mas quantas vidas?

Era exatamente dela que reclamavam, da filhote. Repito: Pobre Leda. Ela tem um quilo e meio, dois meses e meio. É tão infantil que ainda não sabe latir. Passa os dias dormindo e me acompanhando. Mas mesmo assim, o coletivo anônimo com quem convivo é intolerante a ela. Decerto ouviram algum de seus ganidos, porque ela ainda é tão infantil que não suporta a solidão, e imagino que chore um pouco quando estou fora. Mas desde que a adotei estou de férias, então, em termos práticos, eu não fico fora de casa. De que eles reclamam?

A outra consideração era sobre o cheiro de substâncias ilícitas que andam sendo emanados na vizinhança. Eu sinto às vezes, no segundo andar, no corredor, mas nunca me interessei pela vida alheia e nem achei que os odores do corredor deveria incomodar-me. Às vezes tem cheiro de comida sendo cozinhada, às vezes tem cheiro de esgoto se despejando, às vezes tem cheiro quase nauseante de cebola sendo frita, às vezes tem cheiro de incenso e às vezes tem cheiro, exatamente, de ilícitos sendo consumidos. Aos outros incomoda. Agenor disse que estava passando de apartamento em apartamento para avisar aos moradores da nova resolução do condomínio: que se novas reclamações surgissem, a polícia poderia ser chamada e entraria dentro dos apartamentos para verificar a “situação”.

Era o que me faltava. Agora, corro o risco de ser invadida pelo defasado, incipiente e claramente corrompido órgão de segurança pública na retidão e placidez de meu lar. Isso, pelo bem do condomínio arrogante que perde parte do seu dia preocupando-se de onde é que vem a marofa. Isso é tão desnecessário e infeliz quanto os indivíduos que passam boa parte de suas vidas discutindo sobre em que buraco é que o pênis ou coisa que o valha deva ser enfiado. Eu só não desejo ser incomodada, ser contatada, ser visitada. É demais em um condomínio?

Conversas vão e vem, o porteiro tenta se tornar mais simpático e me conta das razões da medida: um traficante que habitava as dependências bridienses. [e após uns dias, quando resolvo dar uma olhada naquela papelada toda que o condomínio entrega, atas, reuniões, estatutos, tudo que eu não tive saco de ler anteriormente, eu descobri que nem foi aqui que aconteceu o sucedido do trafica, na verdade, foi tão longe de cá, que foi no continente, não na ilha.].

Continuo achando uma palhaçada. Mas eles são a autoridade, eu os respeito. Rio de suas piadinhas. Simpatia, simpatia. Intimamente pensava, com ironia que agora, quando eu quiser fumar, cigarros de tabaco legalizado, taxado, e quase tão criminalizado quanto os outros cigarrinhos do meu vizinho, vou ter que sair do condomínio. Ou esconder os maços quando sair de casa, pois meu apartamento pode ser “estourado pelos hômi” e sabe-se lá qual a penalidade pra ter cigarro em casa hoje em dia.

A consideração final, incontestável, irrevogável do cínico síndico: “Leve a cachorrinha aonde você for. O condomínio não quer ser incomodado.”

O condomínio, essa entidade...