Oct 29, 2007

O Artista da Fome

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Não é mito. Se Kafka delineava o artista que se compraz de sua fome e a exibe em praça pública, definhando por trocados, há os que, a despeito da miséria do estômago e dos miúdos ressequidos fazendo ruídos em todas as escalas e tons, ainda assim, zonzos de fome, se dedicam ao processo mais sublime, perfeito e puro possível de execução por um humano: o de criar, artisticamente. Que embora só arte transcenda o espírito, só arte recrie vida tão perfeitamente a ponto de dar sentido a ela própria, embora só, exclusiva e somente, a arte, juntando poesia, despeito, drama, sons, cores, acordes, formas, curvas, histórias, alegrias inesperadas e espontâneas, e principalmente, a humanidade mais frágil e escorregadia a pele, essa essência que faz sentir o interior ainda é de pouco valor nesse mundo capitalistamente previsível, consumível e prestes a deterioração em que habitamos.

Sair à rua, na praça. Lá está o músico com seu chapéu onde reluzem duas ou três moedinhas. Talvez simbólicas. As músicas, melodiosas e ressonantes, cuja beleza possivelmente seja potencializada por causa da melancolia que as toma E ao lado vestidos em preto, couro e taxas pontiagudas, jovens vendem poesias escritas na ânsia incontível, hormonal e rebelde da adolescência. Sim, eles tentam vender o que não se comercializa, o que, por todos os céus não é comprável, que só se pode aspirar pelos poros e sentidos. Absorver. E no meio de todo fluxo da cidade, toda a massa anônima em passos rápidos e agitados, existe uma esquina prosaica, um casarão antigo, naquele cantinho de rua está o velhinho branco pintando imagens do colorido e quente litoral que o berça. Só retrata dias alegres, quentes do sol que curtiu a cútis do homenzinho franzino. Mas ninguém compra, ninguém sequer olha pro músico que tenta tocar sua seresta no tráfego, ninguém percebe os poetinhas marotos que querem comprar seu vinho, o velhinho está esquecido na esquina que sequer a memória do litoral lembra.

Artistas que não optam pela miséria, mas que, atirados em seu lodo, se deixam naufragar a tal ponto que só nela conseguem o distanciamento de todos os rótulos, caprichos fúteis, contradições vis que regem a forma como a conduta humana se estabelece. De ventre seco, à noitinha, sem almoço as maiores almas poetas conceberam letras para as quais nem o próprio pensamento está pronto.

Vide tudo isto, a explanação toda que eu discorro sobre os que, se famintos de alimento e dignidade, fartos em lirismo, em dons e em espirituosidade, e é só, e apenas, para introduzir um poema do peruano que personificou a idéia de artista da fome. Quem mesmo de bolsos furados e vazios, transcendeu à matéria e ao ter, concluindo uma produção inovadora, marcante, profunda e, sobretudo, de humanidade e talento comovente.


“ - Senhoras e senhores, el club silencio satisfaz-se em apresentar César Vallejo em uma de suas melhores performances, com o poema ‘Considerando en frío, imparcialmente...’













Considerando en frío, imparcialmente...




Considerando en frío, imparcialmente,

que el hombre es triste, tose y, sin embargo,

se complace en su pecho colorado;

que lo único que hace es componersede días;

que es lóbrego mamífero y se peina...


Considerando

que el hombre procede suavemente del trabajoy

repercute jefe, suena subordinado;

que el diagrama del tiempo

es constante diorama en sus medallasy,

a medio abrir, sus ojos estudiaron,desde lejanos tiempos,

su fórmula famélica de masa...



Comprendiendo sin esfuerzo

que el hombre se queda, a veces, pensando,

como queriendo llorar,

y, sujeto a tenderse como objeto,

se hace buen carpintero, suda, matay

luego canta, almuerza, se abotona...



Considerando también

que el hombre es en verdad un animaly,

no obstante, al voltear, me da con su tristeza en la cabeza...



Examinando, en fin,

sus encontradas piezas, su retrete,

su desesperación, al terminar su día atroz, borrándolo...



Comprendiendo

que él sabe que le quiero,

que le odio con afecto y me es, en suma, indiferente...



Considerando sus documentos generale

sy mirando con lentes aquel certificado

que prueba que nació muy pequeñito...



le hago una seña,

viene,

y le doy un abrazo, emocionado.

¡Qué mas da! Emocionado... Emocionado...






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Oct 15, 2007

Confissão

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Rita pegou o papel na parada de ônibus. Remexeu, remexeu a enorme mochila até encontrar um bloco grosso de folhas brancas, limpas. A primeira letra que leva à segunda e à terceira. Verbo puxa verbo. Assim sempre fora a forma como escrevia: vinha o impulso incontrolável, descabido até, em determinadas situações. E aí, ficava só papel, caneta e enxurrada. A caligrafia absurdamente ilegível. Uns rabiscos rasurados, censurados, trêmulos. Não havia tempo para se esmerar na forma, tinha todo o conteúdo de seu peito a expressar. Na cadência que se estruturou, viu que confessava particularmente como era, tendo-lhe como única expectadora, única ouvinte. Na parada de ônibus, não viesse mais ônibus, nem escutava os barulhos e os gritinhos das crianças indo para a escola, nem as conversas de vizinhas íntimas e inocentemente maldosas. Queria que sua prece, sua oração exclusiva que o impulso não deixava acabar, se concebesse líquida, fluída. E branca e alva. Eram pequenos versos, alguns joguinhos verbais, que de estalido se findaram. Talvez pegajosos, talvez fluídos, talvez alvos, talvez carnais. Eram seus.























[...]





Sou bicho. E capricho.
Uma eterna caçada de profusão
Até onde
Há quietude.
Sou mata, mato,
Morrer.
Orações pegajosas entregues nos
Panfletos, papel amarelo na ladeira
De onde descem
Os meninos
Escuros.

[...] Escuro.

Sou manhã fria, manha, preguiça,
Tarde primaveril, chuva leve ao
Anoitecer, a cantiga de ninar em
Assobios que fazem calar.

Ahn, e sou capacho,
Um escracho em que
Se pode pisar,
Sem vestígio
De receio.
Um pedaço de pelúcia
Rasgado, estirado,
No chão sujo.
Quem lambe as solas
Das chinelas, ou ainda,
Aquela que se indigna com os pavores do mundo.,
Levanta, e se põe a sapatear
Por sobre cada um dos calos
Alheios.

...freneticamente...

E nessas crises de ego, de alma.
De existência que chegam pela porta da frente,
Eu não posso, não creio
Ser nada.
Um pequeno agregado de vácuo
Na poltrona, a não matéria cabisbaixa,
À beira de onde se findou todo o sentido.
Toda a essência.
Mas, ainda...
...sou tanto!
Quanta coisa distorcida,
E refeita.
Desmontada,
E reconstruídas.
Todas essas visões revisitadas,
Os sentidos...!

Essas mãos habilidosas que
Tecem, as teias, os dramas.
Essas almas contando estórias,
Essas fábulas sem moral.
Versos ritmados
Do que é pitoresco.
Burlesco, exagero.
Cadência, ahn, gira, gira
A ciranda.
Vejo o mundo, então, afinal,
Só posso ser mundo,
Soletro-o!

[...]
Duas mãos em concha
Que abrigam água fresca, límpida.,
A água, o elemento vital, o bálsamo,
Que gota,
A gota,
Esvai-se pelos
Longos
[e finos!]
dedos.

Oct 11, 2007

reatada com o blógue.

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Os jornais amarelam e o pó se posta aos montes na prateleira. É ele, gigante, retumbante, o tempo liberando seu ocre e deixando sua lembrança aos alérgicos. Também este pequeno club, estas arestas que abrigam umas ou outras idéias, as cadeiras, o palco, tudo parece anunciar com pó e assobios a passagem da grandeza que não se mede, todo o inominável que deixa pra trás o calendário. Que hajam teias pelos cantinhos ou no forro de meu pequeno club retirado de todo o mais, que não haja ruído algum, só copos quebrados. Há horas de limpeza e desconstrução. Assim, ordem irreversível, o demolir pra reconstruir. Pôr abaixo paredes, pôr abaixo imagens, certezas e abstrações tolas. E ficar com o essencial. Hora de retomar.
***
DIAS GOSTOSOS



















Ela estendeu a mão e acendeu o primeiro cigarro da manhã. À rede. Um balanço preguiçoso, até o vento despertava leve, espreguiçando-se pelos lados, sem direção. Uña chica passava na trilha de areia e mato enquanto observava os pássaros derramando seus sons pelo céu, parou alguns segundos, cumprimentou-a mansa, com aqueles dengos de quem acabou de acordar, e com simpatia incomum aos desconhecidos. Todos os desconhecidos eram assim no bairro, simpáticos, agradáveis. Mas ainda era cedo e não haviam trânsito nas trilhas de areia fofa. Não havia nem barulho. Só o azulão além das dunas, aquele bocado de mar que suga, hipnotiza, diverte, encanta, é que estava bravio na matina. A fúria das ondas que estouravam e da maré que acabava de baixar se postavam aos ouvidos, embora, um pouco distantes. Aquele ruído de fundo acalentando o sono também era conforto ao despertar. As sensações de um paraíso quieto, primitivo, lindo eram as de todo o dia. De fato, um paraíso.

Todas as horas transcendiam assim, leves, para a menina que se adaptava à vida no lugar ermo. Não ermo daquele jeito enfadonho, horas e horas desperdiçadas, como se fossem todos dias comuns. As coisas aconteciam, ressoavam, vinham de encontro a ela naquele ponto de paz que lhe abrigava. Todo o instante acontecia, festivo, tenso, produtivo. Mas, em geral, o clima sempre acabava tendendo ao bucolismo, ao despretencioso, ao aconchegante. A rede para os cigarros, os livros que, enfim, tinha tempo para ler, a areia fofa pra enfiar os pés, as poucas roupas de caimento solto, soltíssimo, meros pedaçotes de pano a tapar cá e lá, um Caetano jovem e inebriado de litoral no vinil e, por fim, o mar ali adiante – água gelada feito bálsamo pra alma e um descanso infinito pra vista.

“Dias gostosos”. A única frase com que a menina de cabelos grandes e pele avermelhada se acostumando ao sol podia definir seu novo tempo. Era tudo novidade, ela não estava acostumada com tanta candura, tanta beleza, tanto sol. Vinha de um lugar frio e gostava das noites geladas de seu antigo lar. Mas as sensações são diferentes no litoral. Mais aprazíveis, inclusive. Preocupações esdrúxulas da vida urbanóide somem. Sobram as angústias reais com o que é verdadeiramente importante. O essencial.

Era gosto. Gosto de fazer as coisas. Tudo meio gingado e embalado, a própria rotina não entediava. De oposto: saber que hoje faria as mesmas coisas de ontem alegrava ela. Porque mesmo repetidas, as coisas eram prazerosas, de forma ou outra. Uma caminhada na beira da praia não seria igual à de ontem. Um entardecer não era igual a outro. Mas mesmo assim, em todos os torpores da partida do astro-rei, a cada dia mirando-o partir ela declamava mentalmente os versos de Cruz & Sousa, simbolista local:“Indefiníveis músicas supremas/ Harmonias da cor e do perfume/ Horas do acaso, trêmulas, extremas/ Réquiem do Sol que a dor da luz resume.”