Mar 29, 2007

notas do calor [ou: liquefeita ao entardecer]

a previsão prefere nem indicar, mas a verdade do dia são uns 58° na sombra da madrugada. e pouco importa se é outono; a biosfera anda toda fodida [uóps!] e amalucada mesmo. temperaturas normais da estação é que seriam coisa estranha. e a culpa? culpa minha, tua, de todos. especialmente dos estaúdos úniudos. sim, eles são culpadões, sempre são.

temo, porém, que julgamentos de quem transformou um belo planetinha cheio de bichinhos e plantinhas e riachos em um tumor maligno, purulento e fétido não venham ao caso. o que enalteço é que o calor mexe com a gente. transforma pressão normal em picos de sub-zero, mentes geniais em letárgicas e preguiçosas e as melhores intenções se esvaem no suor que escorre pelo sofá em que só se deseja atirar-se.

mas ao invés de me jogar no sofá, preferi escrever. como se as palavras fossem o suor que não deixo meus poros expelirem. notas do calor, é o nome. e se você espera coisa boa, azar o seu.

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não tenho cabelos lisos. são ondulados, rebeldes, cheios daquilo que chamam de frizz nas embalagens de xampús. hoje em dia, eu não me importo nem um pouquinho. é meu cabelo. meu e assim e ponto. mas confesso que, assim como 93,37% das mulheres (média puramente empírica) já me empenhei em alisá-los, diária e rotineiramente. e aí, meu bem, vai de ferro à vapor, chapinha, cremarada e coragem. muita dela.

e olha que nem condeno a mania de perseguição por fios esquálidos. só que morrer em um alisamento progressivo é foda. pra não dizer patético e ser maldosa de uma vez. vaidade tem limite no bom-senso. e, segundo esse, encher a cabeça de amônia e formol é l-o-u-c-u-r-a. sei lá, pelo menos eu e meu parco senso de realidade achamos.

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lembra do henry sobel? o rabino que falava estranho e rendia algumas gargalhadas das almas menos puras feito a minha? poizé, o cara foi dar vexame lá em palm beach, na terrinha do tio sam. o rabino foi pego roubando gravatas nas lojinhas szúper chiques e descoladas [huh!] da louis vitton, da gucci e da giorgio armani. após seus furtos foi preso e encaminhado à cadeia da cidade. mas os acessos de deliqüência do bom rapaz judeu renderam só uma noitada no xilindró e, no outro dia, ele foi solto após pagar US$ 3.000 de fiança e US$ 680 referente às gravatas roubadas.

pô! mas até os rabinos! vai por mim que a coisarada têm mais jeito não. daqui pra frente, meu bem, é só ladeira abaixo.

(fonte: site Folha de São Paulo)

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falando pessoalmente, até gosto de fazer mudanças. levantar o cortiço e encaixotar toda quinquilharia, tralharada e afins proporciona uns bons vinte minutos de diversão e reminiscências. especialmente: as reminiscências.

se eu pudesse, levava a melhor coisa da planaltense pêéfê, que é o pôr-do-sol. são poentes de aquarela, multicolores. às vezes até parece que o céu se manchou de sangue e fogo por alguns instantes, até que a noite escura e estranha caia. pena que não cabe na mala. nem em caixa de bolachas que me serve de bagageiro, nem nas minhas malas de sacoleira paraguaya. sendo assim, fico eu com as minhas poucas coisas. umas xícaras, uns livros, alguns papéis e bem poucas roupas. só o imprescindível.

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falando mais pessoalmente ainda, também deveria levar umas pessoinhas dentro das caixolas de papelão. umas poucas. e boas. mesmo as que estão longe. engano-me, provavelmente as especias distantes em potencial - ou as de quem me distanciarei agora - é que deveriam, mais que tudo, estarem na bagagem. condensá-las em garrafinhas vazias de uísque é uma boa idéia, e das mais poéticas.

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tire o papa's do mama's e fique só com uma das moças e você ainda terá som de qualidade. mama cass elliot, a mais gordinha. voz gutural, que toca aquela parte do espírito que a gente acha que nem têm mais. make your own kind of music já funciona pra te fazer cantarolar pela casa, sorrir macio e acreditar que, em algum canto desconhecido ou macega intocada, ainda existem um pouco de beleza bucólica, riso espontâneo e diversão no sentido mais puro da palavra. dream a little dream of me, vai por mim que é bom.




nobody can tell ya,
there's only one song worth singing,
they may try and sell ya,
cause it hangs them up to see someone like you

but you've gotta make your own kind of music,
sing your own special song,
even if nobody else sing along.

[...]

[make your own kind of music - barry mann and cynthia weil]



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Mar 17, 2007

da diferença.






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tornou-se possível obter o pensamento estratégico, o físico imponente e a disposição para serviços, digamos, ...pesados da ala masculina e, ao mesmo tempo, a candura, o senso de justiça, a organização, a sensibilidade e a empatia das melhores fêmeas.




ser mulher é das tarefas mais difíceis. há de se ter culhões - metafóricos, deixemos claro - pra sobreviver nesse império decadente construído pelos viris varões. são leis, doutrinas, dogmas culturais a formar o montante sexista [pra não ser clara e usar o termo machista de uma vez] que impede o tráfego da harmonia entre gêneros.

antigamente, daqueles parcos agrupados sociais à simétrica arquitetura grego-romana, o pessoal era muito mais esperto. sabia-se, senão venerar a mulher, colocá-la na devida posição merecida. era de senso comum o apreço à iniqüidade dos gêneros. e dessa forma, as melhores características de ambos os sexos eram aproveitadas. tornou-se possível obter o pensamento estratégico, o físico imponente e a disposição para serviços, digamos, ...pesados da ala masculina e, ao mesmo tempo, a candura, o senso de justiça, a organização, a sensibilidade e a empatia das melhores fêmeas.

já fui feminista ferrenha. daquelas que rosnam grrrrrl. senão do tipo que bate cartão no ponto antiquado, do tipo que se engaja nas batalhas mais inúteis, mais estúpidas. ainda ingênua, eu bradava contra as diferenças e diferenciações. se qualquer brutamontes de duzentos quilos falasse em queda de braço eu empinava o nariz e propunha batalha. até disfarçava a cara de dor na luta manual. (ainda que o bom moço não utilizasse de toda a sua força, doía mesmo) . só um pingo de experiência serviu pra me mostrar que as diferenças são o limite. o ponto de onde não se ultrapassa. as iniqüidades são exatamente onde reside a patologia a ser tratada. se homens e mulheres têm lá suas habilidades e fraquezas peculiares, o que se pode fazer é aprimorá-las e extinguí-las de maneira distinta para cada gênero.

se alguma mocidade já me fez gritar em mutismo as camelices iradas, hoje ando otimista. mesmo que o ideal em termos [in]diferenciação de gêneros ainda esteja longe no horizonte, ao menos alguns passos já foram dados. projetos, ongs e as empreitadas de repasse de conhecimento a todas as mulheres são um pouco da realidade necessária que já figura nestas terras. é um começo. se esse mundico ainda tem jeito, ao menos em partes começa a sua caminhada tímida à resolução.

e que se é pra ser realista, não há como omitir em minhas palavras os verdadeiros quadrúpedes que cavalgam sem cela por aí. eles espreitam nas beiradas e gritam obscenidades patéticas para tentar vislumbrar a verdadeira masculinidade de que não foram contemplados. não podem - verdade eles não conseguem – ultrapassar o lugar comum a que foram submetidos. como se houvessem sido transportados magicamente de uma baixa idade média, do tempo em que pairavam todas as sombras da ignorância. sim, eles não escapam à nossa visão. em contrapartida - e pra mostrar que nem sou mais extremista - há também bons exemplares que escapam ao cliché de agregados de testosterona. ainda no mesmo acesso de contentamento otimista que me circunda, ouso falar que eles estão por aí. porque a existência de bons ou maus, mocinhos e vilões não depende de nada. nem de classe, nem de raça, nem de opção sexual. muito menos de gênero.

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Mar 9, 2007

os beats no refluxo.



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a beat generation foi aquela turminha de jovens intelectuais, boêmios e errantes – o que hoje em dia até parece cliché – que, nos idos de 1940, alçou sua literatura do subsolo para que ela, inclusive, vislumbrasse o sol raiante dos movimentos juvenis cerca de vinte anos após. o mote foi boicotar o formalismo literário e o otimismo pós-guerra dos “states” para versar, de forma genuína, as aventuras enraizadas entre bares, be-bop e longas viagens (das literais e das figuradas). on the road ("pé na estrada", aqui nas terras tupiniquins, Jack Kerouac), o uivo, kaddish e outros poemas (Allen Ginsberg), junky (ou junkie, dependendo da edição, Willian Burroughs) são verdadeiras bíblias da contracultura, verdadeiramente afixadas no imaginário ocidental.

devido aos conteúdos fortemente biográficos dos clássicos da trupe, houve a conseqüente disseminação de boa parte do que viviam Jack “On the Road” Kerouac, Neal Cassady, Allen Ginsberg, William Burroughs, Henry Miller, etc. os anos de glória são dos mais conhecidos, em contrapartida, os anos posteriores à efervescência que possibilitou o movimento representam um abismo no que diz respeito ao conhecimento do grande público. Ou seja: pouco se sabe sobre o tempo da suposta decadência.

devidamente salvas algumas biografias, fala-se muito pouco do findar da época áurea e produtiva dos beatniks – uma das conseqüências do óbito das agitações sessentistas – e do princípio de uma década de 70 insossa e marcada pelo refluxo. especialmente, em poucas edições figura a maneira como mesmo esses grandes nomes não puderam escapar ilesos ao regurgito das transformações até então realizadas. nem mesmo os gênios desse enredo poderiam fugir, de qualquer forma.

ignorava-se, por exemplo, que esse núcleo de ícones fundou a escola de poesia jack kerouac school of disembodied poectis (escola jack kerouac de poesias desencarnadas), anexada à universidade budista de Boldier, Colorado. Sam Kashner, então adolescente entusiasta da poesia beatnik, foi o primeiro e único aluno da escola de Jack por algum tempo e, é para retratar esse período – entre 1975 e 1977 – que escreveu Quando eu era o talminha vida na Jack Kerouac School (Planeta, 2005).

além de não se ater às delongas e focalizar um período específico, Kashner contraria as biografias usuais por não tentar ser imparcial: ele narra as peculiaridades de seus mestres com carinho sem, contudo, render-se às pieguices. o autor não busca, em momento algum, esconder a admiração fanática que o toma ao longo da narrativa. muito menos esconder o fato de que essência propulsora do movimento dissipava-se a passos largos e de que Kerouac e turma já não se encontravam em ascensão, e sim, em franco desespero para conter o naufrágio iminente.

sejamos francos: consideradas as personas que protagonizam a narrativa, é impossível que esta se detenha aos relatos de um estabelecimento de ensino com proposições não-sistemáticas. os, então, mestres de kashner rendem boas histórias, isso é presumível. a obra vai tão além da sala de aula quanto possível.

exatamente pelo livro haver sido livre de pretensões histórias é que sua projeção torna-se tão impressionante. ele possibilita ao leitor que já está acostumado com as obras beats contemplar os autores por uma ótica até então não vista. um dos aspectos mais interessantes é que o autor isenta seu corpo docente inusitado do tom mitificador para torná-lo composto de humanos. humanos incríveis e geniais, sim, todavia, tão cheios de tiques, excentricidades, dramas e tragédias quanto qualquer outro. aliás, engano-me: as excentricidades, os tiques e os dramas extrapolam longe a dose contida nos quaisquer outros indivíduos.



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olha só:

personagens de si mesmos, os beats renderam pilhas de biografias. todas interessantíssimas, aliás é impossível não ser, mesmo que a maioria não fuja à velha abordagem criadora de mitos. O ano de 2005 foi particularmente próspero e, além da manifestação de Sam Kashner, foram lançados, no Brasil: a nova visão de blake dos beats (Sérgio Cohn, Azougue); Jack Kerouac, o rei dos beatniks (Antônio Bivar, Brasiliense). para quem ainda não tomou gosto pela literatura subterrânea, sugiro, além dos clássicos já mencionados, o livro de sonhos e os subterrâneos, ambos de Jack Kerouac; almoço nu, do Burroughs e a queda da américa, de ginsberg.


Mar 8, 2007

mujer do dia: florbela espanca.

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gosto do dia internacional das mujeres. acho que o termo exato é simpatia. isso, sinto simpatia, aquela coisa meio termo, né?... simpatizo especialmente com a intensidade com que ele é celebrado. o que me irrita é a eterna pieguice que estampa qualquer canto que se olhe no oito de março. é chocolate, flor e bebê por todo o santo lado. como se quanto mais apegada às sentimentalices e doçuras fosse a exemplar da raça feminina, supostamente, mais mulherzinha seria.

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[e, sinceramente, eu dispenso o diazinho com cumprimentos e VTs toscos na tevê. aliás, troco-o por um pingo igualdade entre os nossos salários e o dos nossos colegas da ala masculina. por mais insensível que venha a aparentar.]


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e talvez por estar tão estupefata das pieguices é que escolhi uma das mais bacanas, inteligentes e fodonas (se é que os bons modos permitem o termo!) moças que já existiram pra venerar. venerar, adorar mesmo, sem comedimento ou pudor algum...!

florbela espanca, se chama ela. seu próprio nome soa feito verso e, não parando por aí, o talento do lirismo veio já cravejado nos poros da moça. com só sete anos - ainda com aqueles imensos erros ortográficos - seus poemas já atingiam incrível complexidade. coisa de fazer crítico rabugento pagar pau.

gostava de se chamar ora de flor, ora de bela. uma brincadeira que fazia com o próprio ar de quimera que seu nome exalava. e a moça amava. amava com todas suas gotas de suor, de sangue e de lágrima. mas não desses amores que a disney tratou de incutir nas cabecinhas mais desavisadas. a jovem florbela entregava-se a amores diários. eternamente refeitos. amores de dom quixote, amores insones. amores que queimam, ardem, rasgam e ao mesmo tempo curam e salvam. amor e desamor. opostos. desequilíbrio e passionalidade. tudo no seu tom incrivelmente requintado.

como boa representante dos confins lusitanos, a moça de prosa e rima não se intimidava. já em 1917 entregava-se à vida notívaga sem dó ou instinto de auto-preservação. e é com sua postura classuda e peito erguido que ela encara o final de seu casamento, selado desde menina, quando florbela tinha 19 anos. o motivo: a poetisa não conseguia engravidar sem que logo sofresse um aborto. e é então que a garota dedica-se aos versos indefinidamente crus, tortuosos e lindos. versos lascívios. versos reais. versos ríspidos que se lê com o peito arfante. daqueles difíceis de esquecer.

para seu final, florbela escolheu o mesmo caminho que originou seu nome: incorporar a beleza única de um soneto encenado. no mesmo dia em que nasceu e casou, oito de março, já no abrir da década de trinta, ela se suicidou. as neuroses e o edema pulmonar a levavam à exaustão diariamente. e que o fim escolhido pela poeta que não temia sofrer suas dores e chorar suas lástimas só poderia ser assim: rompante e belo.

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Volúpia

No divino impudor da mocidade,
Nesse êxtase pagão que vence a sorte,
Num frémito vibrante de ansiedade,
Dou-te o meu corpo prometido à morte!

A sombra entre a mentira e a verdade...
A núvem que arrastou o vento norte...
- Meu corpo! Trago nele um vinho forte:
Meus beijos de volúpia e de maldade!

Trago dálias vermelhas no regaço...
São os dedos do sol quando te abraço,
Cravados no teu peito como lanças!

E do meu corpo os leves arabescos
Vão-te envolvendo em círculos dantescos
Felinamente, em voluptuosas danças...


(florbela espanca, livro de soror saudades)

Mar 3, 2007

vai de cinema que é sábado.



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"você já confundiu um sonho com a realidade?
ou já roubou algo quando tinha dinheiro para comprar?
já se sentiu triste?
ou achou que o trem andava quando ele estava parado?
talvez eu fosse louca mesmo,
talvez fossem só os anos sessenta,
ou talvez eu fosse só uma garota...
...interrompida."


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Girl, Interrupted
(Garota, Interrompida). EUA, 1999,
Columbia Pictures Corporation. James Mangold.


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Mar 1, 2007

menino do churro

o menininho se encontra livre pra ousar em seus passos: já não há bandeja pra ser equilibrada. e todos se reúnem pra armar o guarda-sol e sentir a brisa do mar.


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o menino caminhava trôpego. suas perninhas curtas não conseguiam dar os passos do tamanho necessários à areia mole. seu porte era de seis ou sete anos. cabelos loiros amarelados pelo sol e pele também destrata pelo astro rei - especialmente no caso de uma criança. nas mãos, uma bandeja de aluminío. e organizados em encardidos canos de p.v.c estavam churros. churros feios, nem um pouco apetitosos.

eu saía do mar e detinha meu olhar no menino que tropeçava em minha direção. estávamos na praia de ingleses – lugar meio família, abarrotado de argentinos, de admirável costa e que esconde os recônditos onde a mais bela das estéticas mora. a temperatura era alta, os raios atingiam a derme feito milhões de pequenas agulhas. não haviam meios de se suportar uma areia clara e pronta pra refletir a densidade do calor naquela hora. mas, mesmo assim, o menino encavara aquele aglomerado de grãos incandescentes com bravura comovente. porque heroísmo mesmo é uma criança agüentar o que nem eu mesma agüentaria e com a cara límpida de expressão e lustra de suor. e não havia contrariedade alguma no rosto do menino.

há alguns passos pequenos de onde eu estava, eis que as perninhas do garoto se arcam num tropeço. é menininho ainda descordenado: ele vai ao chão. e junto de seu corpinho magro, cai a bandeja. um a um os churros têm seu açúcar misturado com aquela areia branca e fina. uma família argentina ajuda o menino a recolher os doces. ele iça a bandeja e continua sua marcha funesta. ele não vislumbra a idéia de parar um pouco seus passinhos moles. deve chegar ao rochedo do outro lado da costa. o menino litorâneo não pode se dar ao luxo de se refrescar no verão de calor interminável. não quando se precisa vender os churros. mesmo que nem o descanso e nem o alívio das ondas pra aplacar seu suor venham.

quando a peregrinação lenta do pequeno menino o trouxe até diante de mim, o pedi que me vendesse um churro. não, eu não comeria a massa frita cravejada de areia. e, sim, eu me sinto culpada por estimular a sofreguidão comercial ao qual o menino se submete. mas precisava ajudá-lo de alguma forma. a mais sensata que encontrei foi esta. a verdade é que aquele dinheiro lhe era importante. como poderia eu ver um menino se desgastando daquela forma ao mormaço carregando tão debilmente a bandeja calejada pela maresia. ainda: uma criança tão nova. e desprotegida como qualquer criança. especialmente: como as novas.

fato é que o moleque sem brinquedo e de passos doídos tirou-me do sério. brotou em mim um estarrecimento que não se pode apaziguar. há dias tenho pensado no menininho que sequer protegido por boné consegue disfarçar a secura que lhe toma a face. Cheguei a planejar uma vida feliz pra ele. não trancando-o em um parque de diversões até que a idade lhe indique a saída. desejei-o, antes, uma vidinha com pai empregado, mãe atenciosa, feijão bem encorpado e bife de fígado que é pra crescer. que o pequeno nativo de um lugarzinho tão lindo tivesse que sentir ardor de areia quente em seus pés somente nos fins-de-semana e enquanto corre solto na areia. o menininho se encontra livre pra ousar em seus passos: já não há bandeja pra ser equilibrada. e todos se reúnem pra armar o guarda-sol e sentir a brisa do mar.

pois eles chamam de utopia. não se trata de uma, elas já não me iludem. mas a despeito de quimeras não me tomarem, eu continuo vendo o que faz brotar no estômago dor e pesar, pena e remorso. aquelas indignações que já não se pode reverter.

e se aquele montante idealista de plena igualdade, justiça e fraternidade já não me convence, continuo a criar forças por lutar por uma vida ao menos decente pressa gente que é tão sofrida. [porque não existe nenhum éden na superfície que habitamos. mas devia é ser proibido que qualquer criança sequer vislumbrasse, ainda que de longe, o lugar onde se dá inferno.]


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